Aos 91 anos,
Dona Maria José Veras Lyra é personagem ilustre de São José do Egito, Terra da
Poesia, onde ela cria cinco gatos e viveu três grandes paixões
Bem no Centro de São José do
Egito, no Sertão pernambucano, um armarinho abre as portas todos os dias, há
mais de cem anos, antes das nove da manhã. O casarão é fechado somente após as
cinco da tarde e é o único da região a revender a marca de linhas de costura
Corrente Laranja – todo bom costureiro poderá atestar a relevância dessa
informação. O armarinho não dá dinheiro, isso fica bem claro. Dona Alila, a
cativante senhora de 91 anos por trás do balcão, apura menos de R$ 10 por dia.
E que ninguém se engane: ela vive da aposentadoria como professora e de pensão
obtida com a viuvez. Se continua a abrir as portas do estabelecimento, coisa
que há alguns anos não pode fazer sem a ajuda da amiga Lúcia, de quase metade
de sua idade, é para preservar a lucidez, ver o movimento da cidade e manter
vivas suas histórias de amor. Isso porque Dona Alila nem sempre foi uma senhora
de 91 anos, viúva, com cinco gatos e rotina pacata no pequeno município do
Pajeú. Muito antes de ser a guardiã da Casa Lyra, armarinho fundado em 1915,
apaixonou-se à primeira vista e a vida mudou.
Era a década de 1940 quando a
roda do destino de Alila começou a girar: Alila passava as férias na casa da
madrinha, em São José, e conheceu Mário Vieira de Lyra. Foi amor instantâneo e
se provou longevo, de modo que ela passaria um mês na cidade em que, como se sabe,
passou toda a vida. “Cheguei em 1946. Depois de algumas semanas, recebi uma
carta da minha irmã Estela, pedindo que eu não desse conversa a um rapaz
chamado Mário, por quem ela tinha se apaixonado pouco antes, quando visitava a
cidade. Era justamente o rapaz por quem eu já estava apaixonada”, lembra Maria
José Veras Lyra, a Dona Alila. Ela ri das coincidências da vida. Naquele mesmo
ano, em respeito à irmã, arrumou as malas e voltou à cidade natal: o melhor a
fazer era manter distância, antes que houvesse motivo de desafeto na família.
Dias depois, contudo, o rapaz bateu ao portão da casa dos Vera, em Afogados da
Ingazeira, e pediu a mão de Alila em casamento.
Foi em São José do Egito,
portanto, que os primeiros meses em que Alila experimentava o amor foram se
transformando em anos. E, então, viraram décadas – sete delas, para falar com
precisão. E Alila foi se tornando pessoa de referência na região: já casada com
Mário, conseguiu trabalho na Escola Estadual de Referência Oliveira Lima, onde
atuou por 30 anos. “Quando meu sogro faleceu, em 1960, Mário assumiu o balcão
da Casa Lyra, que o pai tinha fundado, mais ou menos na época em que virei
diretora da escola”, ela recorda. Naquele tempo, a rotina que a transformou em
figura ilustre no município era bastante puxada: “Eu chegava todos os dias às
seis da manhã, abria a despensa para as meninas que preparavam a merenda e saía
somente às onze da noite, depois das aulas de alfabetização de adultos. A minha
vida era aquele colégio… Me sobrecarreguei tanto que adoeci”, conta. À frente
da Oliveira Lima, sua segunda paixão, Dona Alila foi submetida a uma
angioplastia e recebeu, além de um marca-passo, uma válvula artificial no
coração.
Como Alila foi parar atrás do
balcão da Casa Lyra é a parte mais curiosa – ao mesmo tempo bonita e triste –
da história. Foi um gesto de delicadeza do destino, depois de dois golpes de
dor. Em maio de 1987, enquanto organizava a festa de Dia das Mães no colégio,
Alila recebeu um telefonema da cunhada que morava na capital do estado. Soube,
ali, de seu afastamento da diretoria da Oliveira Lima, decisão já homologada
pelo
governo do estado no Diário Oficial da União. “Eu tinha passado a
madrugada preparando um bolo para a homenagem às mães. Fiquei olhando aquele
bolo na minha mesa, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir. Fiquei muito
magoada com (Miguel) Arraes, que era o governador… Muitos diretores foram
substituídos no estado, não era nada pessoal. Mas foi tanta tristeza naquele
dia, que eu pensei que minha vida tivesse acabado”, lembra Alila, que se
emociona sempre que resgata os bons tempos na comunidade escolar. Hoje, ela
garante, reza todos os dias pela alma de Arraes. Não fosse a destituição do
cargo de diretora, não teria assumido a Casa Lyra quando foi preciso.
“No meu último dia na Oliveira
Lima, telefonei para Mário e pedi que tirasse o Fusca da garagem para me buscar
no fim da noite. Eu tinha muita coisa para carregar, não queria que ninguém me
visse subindo a ladeira com minhas pastas na mão, chorando. Meu marido era meu
melhor amigo, chorou comigo quando dei a notícia”, conta. Alila não sabia, mas
aquela se revelaria sua última chance de conviver mais com o marido, que
morreria três anos depois. “Fiquei devastada com a demissão, mas terminou sendo
um presente para nós dois”, avalia, quase 30 anos depois. Nos últimos anos com
Mário, aprendeu a manejar o estoque e o caixa do armazém Casa Lyra, que ela
mesma transformou em armarinho nos anos 1990. Era mais fácil manusear linhas,
botões, zíperes e carretéis – do armazém original, restam à venda somente
parafusos, de todas as espessuras e tamanhos. “O armarinho me dá alegria, não
dinheiro. E eu nunca tirei nem um dia de folga, porque aqui eu me mantenho
ativa, faço contas, arrumo as coisas, vejo as pessoas, me lembro de Mário”,
explica, outra vez apaixonada. Mas nem precisava, os motivos são todos muito
claros. Lúcia de Souza Silva, 53 anos, lhe acompanha nos afazeres domésticos e
do armarinho desde que o ex-marido partiu. Foi enviada por uma das cunhadas, a
fim de preservar Alila da solidão.
As placas na fachada da Casa Lyra
ajudam a reconstruir os fatos. “Por este centenário, agradecemos aos nossos
amigos Mário Lyra (Tatá) e Alila pela dedicação na continuidade desse
trabalho”, diz uma delas, fixada no casarão em 2015, quando o armarinho
completou um século de fundação. É um registro da história de amor de Alila, a
única que ela viveu. “Fui felicíssima. Diziam que éramos o casal número um da
cidade e não porque a gente tivesse luxo, não era isso. Era porque andávamos
juntos para todo canto, participávamos de tudo que acontecia em São José do
Egito. Enquanto foi vivo, Mário fez absolutamente tudo o que eu quis, acredita?
Depois, ainda me deixou a Casa Lyra, que me mantém viva e lúcida até hoje”, ela
conta. Os dois não tiveram filhos, mas pode-se dizer que estão perpetuados na
memória do município, nas paredes do armarinho secular. Sobre quantas histórias
se diz o mesmo? Para agradecer a generosidade do destino, Dona Alila vai à
missa nas primeiras sextas-feiras de cada mês. Ela espera sempre por mais
“visitas”, como chama os clientes, para ter com quem conversar. Recebe com
menos frequência os fornecedores, pois tem feito menos pedidos
>> Para
visitar
Dona Alila abre as portas da Casa
Lyra entre as 8h e as 9h, todos os dias, quando é recebida pelo gato
Papaizinho, criado ali dentro. Por volta das 17h30, segue para casa junto com
Lúcia e encontra os outros quatro gatos de estimação – Chuchu, Suzi, Kiko e
Florzinha. A Casa Lyra fica na Rua João Pessoa, n. 49, no Centro de São José do
Egito, no Sertão de Pernambuco.
diante da baixa demanda, e não
acha justo com Lúcia, nem com os gatos, repetir sua história mais uma vez –
eles sabem tudo de cor. Mas a história de Dona Alila tem sido, para si mesma e
para os outros, um presente. Ela mesma pode assegurar que algo de
extraordinário lhe moldou o percurso: “A vida que eu quis, do jeitinho que eu
sonhava, caiu aqui, minha filha, bem na palma da minha mão.”
Larissa
Lins
Repórter
Larissa é jornalista formada pela
UFPE. Foi repórter de cultura por anos, no Diario, hoje é redadora do
Estúdio DP e colabora para o CuriosaMente. Diferente de Dona Alila, conheceu o
Sertão mais tarde na vida, mas também se descobriu com sentimentos pelo
semiárido.
Rafael
Martins
Fotógrafo
Rafael é o fotógrafo baiano mais
pernambucano do Diario. Integra a equipe do Estúdio DP desde março de
2017. Neste ano, completou um feito para qualquer repórter local: não tem uma
região do Sertão pernambucano que não tenha visitado.
Fonte: Curiosamente - Diário de Pernambuco
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