Alto, ágil, entrou, saudou curvando a estatura de
mosqueteiro da Rainha, reaprumou-se e disse com naturalidade, com precisão, com
nitidez – eu o poeta Rogaciano Leite!
Era mesmo o poeta. Lembrei-me de Guerra Junqueiro no
processo criminal do PÁTRIA. Qual é a sua profissão? – perguntou o
Juiz formador da culpa. Poeta! – respondeu o velho Guerra. Não era. Junqueiro
era lavrador de vinhas, dono de quintas em Barca d’alva, comprador de
bric-a-brac em Espanha, antiquário em Lisboa, ganhando dinheiro com raridades
pseudas e verdadeiras. Conheço várias peças de coleções suas, o Museu que
tem seu nome, no Porto, assombroso e discreto, por detrás da Sé Catedral. Não
era, de profissão, Poeta.
Rogaciano é apenas, única, funcional, realmente, o
Poeta. É o seu título, função credencial. A poesia não lhe é somente o
conteúdo, mas o continente. Desaparecendo o motivo, evaporar-se-ia como uma
ampola de perfume pulverizada.
Viva e sonora, irreprimível e divina na
espontaneidade, turbulência musical, vibração irradiante, nele vive a poesia
dos Bardos, dos Aedos, dos Olans, troveiro da corte d’Amor provençal.
Minnesinger, de caneca de louça branca e cerveja doirada da Baviera, pagem do
conto em Munich, batendo a rima, ritmando a frase, erguendo a voz, ao lado de
Hans Sachs, na glória dos mestres cantores de Nuremberg.
É a coerência, a liberdade, a ousadia, a maturidade
de defender sua fisionomia. Canta, declama, improvisa como sente a Poesia,
divulgando-a na simplicidade, violência, instantaneidade duma inspiração
oracular. Rimas e ritmos são apenas os horizontes limitadores dessa grande,
tonta e luminosa ave de melodia e beleza verbal.
Nesse templo amável de poesia destilada, de
inspiração concentrada em polarizações, medida nas escalas convencionais e
intencionais do aplauso prévio, na combinação fraternal, no intercâmbio das
turiferações políticas e no solidarismo doutrinário, obrigando aos devotos a
vênia do enviado do Senhor, Rogaciano Leite é um ser livre, solitário na
multidão sem Rei e sem Roque, sem bandeira com as cores rituais, sem
compromisso e em obediência. Sua arte é humilde, tempestuosa, nua e pomposa,
incenso a Castro Alves e aos contadores analfabetos, rude e boa, impetuosa e
clara, cheia de alegria, de confiança, de amor, de exaltação.
Nele se reúnem, numa mobilização que é um milagre,
vaqueiros, cantadores, violeiros, improvisadores, velhas e eternas forças do
talento natural, sacudindo as pedras, como as fontes irrompem do solo, fazendo
voar a placa de prata dos granitos.
Rogaciano Leite independe do tempo e do futuro.
Revive Castro Alves e Casimiro de Abreu, florestas de Gonçalves Dias, mares
verdes de José de Alencar. Os motivos poéticos não são expressos como faces
unilaterais do tema, da sensação da emoção. Resume céu, mar, ares, homens e
pensamentos, numa brutalidade revolvedora, instintiva, imediata e magnífica
como uma força incomparável da Natureza. Seus versos trazem terra, árvores,
aves, músicas, amores, tragédias.
Ressuscitou o perdido prodígio de falar aos mortos e
às coisas imóveis. Do fundo do mare por detrás das estrelas, escondido nas
pétalas de flor e nas lianas amazônicas, todos os entes, todas as coisas lhe
obedecem ao apelo, ouvem-lhe a voz miraculosa, atendem-lhe ao chamado
irresistível. E, na moldura das rimas, na quadratura inflexível do ritmo,
desfilam monstros, florestas, oceanos, maravilhas.
Felibre provençal, Meistersinger wagnariano donzel
trovador das bailas d’amor, companheiro del-rei dom Diniz, contador nordestino,
amigo das vozes que perpetuam a Poesia viva do povo, possuidor do segredo das
fontes inesgotáveis e dos caminhos sobre a onda crespa do mar, Rogaciano Leite
é um orgulho para os nossos sentidos contemporâneos, antigo, atual e
sempre novo, impreciso, infixável, revolto, rio varando o mato, o Tabuleiro
cinzento, a serra alta, o descampado sem fim.
O marquês de Angeja andava em Lisboa vestido de
saloio, com o chapéu redondo, a faixa apertando os calções, o jaleco na altura
dos rins, o alforje às costas. Era um labrego que chamava de “Primo” aos duques
e aos príncipes. Um dia, no casamento de Dom Carlos, o futuro de D. Carlos I,
com Dona Amélia d’Orleans, chegou Angeja às portas da Igreja de São Vicente de
Fora, cheia, rutilantes de fardões, joias, diademas, purpuras. Entrou para a
sacristia e lá, ante o olhar surpreso dos guardas metendo as mãos no alforje
foi arrancando peças e vestindo, uma a uma. Era a casaca bordada a oiro, o
sapato de verniz, a meia de seda, o chapéu orlado de prata, a capa magna
de arminho, os crachás, condecorações, o espadim de oiro. Meia hora
depois o saloio era um Par do Reino, conselheiro da coroa, na imponência, no
prestígio, no poder da tradição nobiliárquica e funcional. E o saloio, agora
Senador do Reino, saiu, elegante, leve, desdenhoso, e foi colocar-se no seu
posto à direita do Reino de Portugal.
Rogaciano Leite foi vestindo, uma a uma, as peças
de sua indumentária miraculosa. Voltou a ser, dizendo seus versos, improvisando
sempre o poeta de outrora e de manhã, indo para a linha daqueles que tem o
condão da voz eterna na Poesia viva.
Luis da Camara Cascudo
Natal, 10 de junho de 1948.
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