O espaço poético e musical do Nordeste é complexo o suficiente para exigir cicerone. No roteiro de Alceu Valença, em meio às veredas e estradas de difícil acesso, coco, baião, embolada, violas e cantorias, frevo e maracatu misturam-se a guitarras, sintetizadores e pitadas psicodélicas. Com uma forte marca de originalidade, o músico não só percorre, mas recria essa geografia. "Não sou um tradicionalista, mas respeito as tradições. Então canto frevo no carnaval, forró no São João, e nos shows de meio de ano, misturo de tudo um pouco", aponta.
E amanhã é dia de estar nesse entremeio, na mistura valenciana. O pernambucano condensa musicalmente no palco os percursos que trilhou nos mais de 40 anos de carreira, em show no BNB Clube, às 23 horas, acompanhado por Paulo Rafael (guitarra e violão), Tovinho (teclados), Nando Barreto (baixo) e Cássio Cunha (bateria).
Sem purismos ou pudores no que diz respeito à suas referências - do rock ao xote - o filho de São Bento do Una, no sertão pernambucano, parte dessa raiz semiárida, rumo aos ritmos litorâneos. Percorre das referências do avô materno, violeiro, de figuras como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, atravessadas pelos discos de rock da adolescência, pela psicodelia dos anos 1970, ao frevo e maracatus que o embalam atualmente nas ruas de Recife.
Alceu é representante de uma geração de artistas que apresentou um outro Nordeste ao País, mais urbano. Até a década de 1960, a região tinha como marcas figuras como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. O pernambucano foi um dos primeiros a mostrar essas matrizes com uma pegada contemporânea. Na noite de amanhã, ele percorre o caminho de volta à discos como "Quadrafônico" (1972), "Molhado de Suor" (1974), que traziam canções como "Talismã" e "Papagaio do Futuro. Revisita o encontro na década de 1990, com Elba, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, com que divide canções como "Táxi Lunar" e percorre, ainda, sucessos como "Tropicana", "Girassol" e "La Belle de Jour".
Aos 68 anos de idade, Alceu Valença segue firme na "missão" de revelar e recriar o Nordeste. Por hora, sua obra está disposta em 28 disco, o último deles, "Amigo da Arte", lançado em fevereiro passado.
O disco, que quebrou um jejum de cinco anos sem lançar, é inteiramente dedicado aos ritmos do carnaval pernambucano. Este ano, o músico faz, ainda, sua estreia como cineasta, na direção do filme "A Luneta do Tempo". Rodado no sertão de Pernambuco, o longa-metragem está entre os selecionados para o Festival de Cinema de Gramado, no início de agosto. Até o fim de 2014, Alceu lança ainda o DVD Valencianas, com arranjos de sua obra para concerto. "Me considero um espelho do meu povo. Eu me reconheço nele e ele se reconhece em mim. Acho que esta é a força motriz da minha arte", define.
"Eu prefiro a arte que faz pensar, sem perder a emoção e a ternura"
Após seis anos sem lançar, você está de volta ao disco com uma homenagem ao carnaval do nordeste. Você se transformou, aliás, uma persona já do carnaval de Pernambuco. De onde vem essa paixão toda pela folia?
Nasci em São Bento do Una, no agreste meridional de Pernambuco, uma região muito próxima à de Luiz Gonzaga. Cresci em meio a um universo de aboiadores, emboladores, cantadores, coquistas, cordelistas, cantores de feira e absorvi in loco a cultura que Luiz formatou para criar o baião, ou seja, a cultura do agreste e do sertão nordestino. Já em relação ao carnaval, cujos gêneros vêm do litoral e da zona da mata, meu contato aconteceu a partir dos 8 anos de idade, quando minha família se mudou para o Recife e eu passei a ter contato com o frevo, o maracatu, a ciranda, os caboclinhos, gêneros que homenageio no CD "Amigo da Arte", lançado em fevereiro. Comecei a cantar frevo por influencia de meu amigo e parceiro Carlos Fernando e, com o passar do tempo, me tornei esta persona do carnaval pernambucano, como você diz.
O Brasil perdeu este mês um de seus grandes pensadores, criador e defensor da cultura popular do Nordeste, Ariano Suassuna. Que influência as ideias de Suassuna tem sobre a sua obra?
Comecei a me interessar por literatura na adolescência. Um dos meus tios me apresentou à obra de Fernando Pessoa. Outro me falou de um escritor nascido na Paraíba que começava a se afirmar como autor de teatro. Era Ariano Suassuna. Na época da faculdade, passei a frequentar o TPN (Teatro Popular do Nordeste), do qual Ariano foi um dos fundadores, ao lado de Hermilo Borba Filho e Leda Alves, e assisti às gargalhadas o "Santo e a Porca", um de seus primeiros sucessos na dramaturgia. Aprendi com Ariano que o regional podia ser universal, algo que se tornou uma espécie de postulado para mim. É como ele dizia: não troco meu "oxente" pelo "ok" de ninguém. Ariano foi um dos grandes pensadores contemporâneos da cultura nordestina e brasileira. Seu legado é incomensurável.
Como está a expectativa da estreia de "A luneta do tempo" no Festival de Gramado? Como foi a experiência como diretor e de trabalhar com a música sob essa nova perspectiva? Você tem a intenção dar sequência a essa seara do cinema?
Fiquei muito feliz com a indicação. A Luneta do Tempo é um projeto que acalentei durante mais de dez anos. Fiz como queria fazer e estou absolutamente satisfeito como resultado. O filme trata de temas que me são especialmente caros, como o cangaço, o circo, o cordel, e outras referências da vida nordestina. Pretendo, sim, fazer outro filme. Gostei da experiência e quero seguir conciliando música, poesia e cinema. Arte pode ser entretenimento, mas eu prefiro a arte que faz pensar, sem perder a emoção e a ternura.
Alceu Valença
Cantor e compositor
Mais informações:
Show Alceu Valença. Sábado, no BNB Clube de Fortaleza - Sede Aldeota (Avenida Santos Dumont, 3646 - Aldeota). Ingresso: R$ 320 / R$ 280. Contato: (85) 4006.7200
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