ma poética literária normalmente não tem receita – essa elaboração de ingredientes e métodos de preparo são inventados depois da criação, por críticos e pupilos ruins. O piauiense Manoel Ricardo de Melo, atualmente morando no Rio de Janeiro, tem para seus textos uma antidefinição: “nem poema nem prosa, nem prosa nem poema”, uma síntese que mostra que não é nas interseções que ele trabalha, mas sim, naquilo que é inconciliável com os mundos fixos. A literatura aqui é um espaço de tensão, de contágio. Um dos exploradores dos caminhos da poesia contemporânea, o autor está no Recife para participar nesta segunda (21/7) do lançamento dos seus dois livros recentes: Geografia aérea (7Letras) e A forma-formante – Ensaios “com” Joaquim Cardozo (UFSC).
No encontro, marcado para às 19h, no Espaço Pasárgada, Manoel Ricardo conversa com três colegas de ofício: os poetas e críticos Everardo Norões (que assina o prefácio de A forma-formante) e Delmo Montenegro e o professor e crítico literário Lourival Holanda. É uma oportunidade para conhecer a criação do autor piauiense e também debater a trajetória e produção de um dos poetas pernambucanos fundamentais, Joaquim Cardozo, muitas vezes esquecido por sua personalidade discreta.
Geografia aérea é uma espécie de antologia, acompanhada também de inéditos. É bom ressaltar que se tratar de uma “espécie” porque Manoel Ricardo não simplesmente republica os textos dos livros Embrulhos, Falas inacabadas (ambos de 2000) e Quando os acidentes acontecem (2009) no formato original: ele os retrabalha e reescreve, numa espécie de “batalha” com o próprio texto, como aponta a crítica Annita Costa Malufe.
“Sempre há. Mas muito mais do que uma ‘batalha’, uma alegria impertinente que vem colada ao pressuposto mais radical dessa ‘geografia aérea’ que, me dei conta, está em todo o meu trabalho desde o começo: a do acidente”, explica. “Prefiro pensar que literatura não é herança, patrimônio, monumento. Mas sim perda, esquecimento, jogo, deriva, apagamento, etc. Reescrever o tempo inteiro é quase uma queda num sistema de descontinuidades, num movimento deliberado contra qualquer possibilidade de memória institucionalizada ou de interpretação. Gosto da ideia de que um texto não representa nada, mas apresenta algo. Talvez algum segredo, isto a que não se pode ter acesso nunca.”
Criar esse espaço de “nem prosa nem poema” é um dos esforços de Manoel Ricardo. O poeta procura entender essa busca não como uma investigação da fronteira entre esses dois campos fixos. “Se literatura é sempre ‘outra coisa’, meu gesto tem a ver um pouco com isso. Acho que é uma insistência, uma tentativa de construir contrapontos e modulações a essa fixidez, tentar compor essa ‘outra coisa’ mais perto de um tecido de imagens que tenha a ver com contato, contágio, contaminação. E aí, me parece, desfazer qualquer formato e propor que todo texto pode ser muito mais uma interdição, uma ação radicalmente livre. Todo texto não é senão um texto que vem”, define o autor.
CARDOZO
A poesia do autor pernambucano é o tema dos seis ensaios do livro teórico de Manoel Ricardo, também lançado hoje. A marcação do título – de que os textos são feitos “com” Cardozo, e não são “sobre” ele simplesmente – é importante, porque definem a proximidade do olhar crítico do piauiense.
“A poesia de Joaquim Cardozo faz parte de minha formação. Mas ficou muito mais intensa quando me dei conta de que estava diante de uma circulação vertiginosa de pensamento. A poesia é apenas uma parte de sua composição de pensamento que é de uma arquitetura singular e política, imaginativa e fabulosa. Uma ‘forma-formante’ imprevisível e engendrada com desdobramentos espantosos (do teatro ao relato, dos poemas aos ensaios sobre arte, arquitetura, as anotações, etc.). E isso é o que mais me interessa”, revela o autor.
Manoel Ricardo lembra que Carlos Drummond de Andrade afirmava que o pernambucano era dono de um “modernismo ausente”. “Essa é de fato a potência mais radical de uma possibilidade que podemos armar, no sentido de uma armadilha mesmo, como contraponto à institucionalização imediata, fixa e autocentrada, do que oficialmente se pauta como ‘o modernismo no Brasil’”, comenta o poeta.
“Ele é praticamente um homem assombrado pelo renascimento e que se coloca silenciosamente em ação diante da modernidade expandida do século 20. Em Poesia da presença invisível ele diz que lembra de homens que poderiam ter sido seus amigos se tivesse nascido em Cingapura. E mais adiante, afirma: ‘Um trem corre sereno na planície dos homens ausentes’. Percebe o lance? Só com esse exemplo, muito rapidamente, é possível ler o seu pensamento como uma laceração díspar aos imperativos fixos e ascéticos de outras leituras do modernismo no Brasil que preferem a síntese”, continua. Esse é Cardozo, para Manoel Ricardo, um modernista discreto, na contramão e, justamente por isso, cada vez mais necessário.
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