O cordel é, também, arredio às interpretações redutoras, às definições apressadas e à mania de compartimentação na qual insistem muitos teóricos. É tradição fugidia já no instante de nomeá-la. Afinal, é daqueles casos extraordinários em que um gênero literário é batizado antes pelo suporte, por hábitos que envolvem sua difusão, do que pelas formas que segue e lhe conferem alguma regularidade. "Cordel" traduz o hábito de expor, nas feiras, essas publicações suspensas em cordões, como vitrine para atrair o público; "literatura de folhetos", outra expressão usada para nomear o mesmo tipo de produção poética, investe numa descrição do tipo de edição a que recorrem os cordelistas, que cabe na palma da mão e corresponde a ¼ de uma folha de papel ofício ou, mais recentemente, de papel A4. (Por este aspecto, o cordel acaba por se aproximar da poesia marginal, da chamada Geração Mimeógrafo - definições também imprecisas, que abarcavam formas bem distintas de poesia, pautadas antes por um método editorial do que pelas formas da poesia ).
Claro, há as características comuns, tanto editoriais como de estilo, que dotam esse fazer poético de uma regularidade que permite se falar em tradição. Quase sempre, a impressão se dá em oito, 12 ou 16 páginas; as estrofes mais usadas são as de seis, sete e dez versos (antes, era corrente o uso da quadra, com quatro versos, mas esta caiu em desuso no cordel); e o formato mais comum de versos tem sete sílabas poéticas.
Há ainda constantes não obrigatórias. É o caso da xilogravura, associada com frequência ao gênero. Essa forma de ilustração, contudo, nem sempre foi a mais usada - antes, gravava-se com velhas chapas de metal.
Dentre outros motivos, a xilo se popularizou por oferecer uma forma rápida e mais barata de ter matrizes de impressão renováveis, diminuindo a repetição de imagens (como à época das chapas metálicas) e tornando seu produto mais atrativo. Razão semelhante fez com que ela perdesse muito de seu espaço, nas últimas décadas, com a adoção da impressão offset pelos poetas e editores de cordel, quando o desenho passou a ser então a forma mais ágil e barata para ilustrar um folheto.
Quanto ao que pode expressar, o cordel não conhece limites. Poesia que tem seu berço na oralidade, a literatura de folhetos traz inscrita em seus versos as marcas da voz, da pronúncia, dos novos significados a velhas palavras que o dicionário ignora, construções aceitas por uma gramática popular e expressões que o povo legitima e que os livros nem sempre registram ou reconhecem.
Deste parentesco com a voz, o cordel herda tanto sua força narrativa, quanto dissertativa. É poesia, mas transita com desenvoltura nestes terrenos da palavra tão associados à prosa.
Ao narrar, o cordel parece preferir o extremos: ou mergulha na imaginação, sem receios, tirando os pés do chão e sonhando acordado com mundos encantados; ou fala do que está ali perto, do que diz respeito a todos, numa aproximação do trabalho jornalístico. Do terreno fantástico, os poetas traziam figuras tão comuns nas histórias medievais, como dragões, heróis nobres e hábeis no manejo da espada, princesas a serem resgatadas; seres mágicos da tradição brasileira, de matriz indígena, africana ou europeia, caso da Cobra Grande, da mula sem cabeça, de lobisomens; e de uma leitura particular da mitologia cristã, traduzida para o contexto sociocultural do poeta, com o Diabo a tentar os homens na terra ou a recebê-los no inferno, além de santos e beatos.
Quando recorre ao real como inspiração ou mote, a arte se faz plural mais uma vez. Os poetas da tradição ora tratam com gravidade os desmandos do mundo, as (muitas) desigualdades socioeconômicas, a seca e as tragédias mundo afora; ora usa o riso para castigar quem merece, compondo sátiras que, por vezes, fazem uso da fantasia, como metáforas bastante diretas.
Dellano Rios
Editor
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