Musical de Chico Buarque e
Ruy Guerra impedido de estrear em 1973 voltará aos palcos em novembro no Rio
RIO - Com lotação esgotada para a
estreia, no dia 8 de novembro de 1973, e mais quatro sessões já vendidas, a
peça “Calabar: o elogio da traição”, de Ruy Guerra e Chico Buarque, não pôde
abrir as cortinas. Naquela noite, o Teatro João Caetano, sede do espetáculo,
tornou-se palco de um dos maiores crimes contra a liberdade de expressão da
história do teatro brasileiro. Por determinação do general de brigada Antônio
Bandeira, então diretor-geral da Polícia Federal, o espetáculo, produzido por
Fernando Torres (1927-2008) ao custo de três milhões de cruzeiros, foi
interditado — e assim ficou por sete anos. Depois de dois meses de ensaios sob
o comando do diretor Fernando Peixoto (1937-2012) e a direção musical de Dori
Caymmi, uma trupe de 48 atores, entre eles Betty Faria, viu o sonho de encenar
um musical brasileiro se desmanchar. Esse sonho perdido alimenta a montagem, já
em andamento, que irá celebrar os 40 anos do espetáculo, com direção do próprio
Guerra. (Ouça acima 'Fado tropical', da trilha do musical) Links Calabar
A estreia será também em novembro e
no mesmo João Caetano que deveria ter abrigado a saga de Domingos Fernandes
Calabar (1600-1635). Realizador de marcos do cinema nacional como “Os fuzis”
(1964), Guerra já convidou Letícia Sabatella para integrar o elenco, no papel
de Bárbara, vivida por Tetê Medina na versão proibida.
— Em 1973, queríamos que a Censura
viesse logo, já nos ensaios, para evitar uma proibição depois que já tivéssemos
levantado o espetáculo inteiro. Corremos atrás dos censores para que eles nos
vissem e decidissem logo o que seria da peça, mas eles adiaram até o último
minuto, deixando todos no prejuízo — conta Guerra, que escreveu o texto na
então casa de Chico, na Lagoa. — Durante meses, trabalhamos sentados um na
frente do outro, cada um numa máquina de escrever. Pesquisamos muito sobre a
primeira metade do século XVII. Cheguei a ir a Minas atrás de livros raros, e
pedimos a opinião do pai do Chico (o historiador Sérgio Buarque de Holanda).
Parceira de Torres na produção (e sua
mulher), Fernanda Montenegro dimensiona o prejuízo:
— Perdemos muita grana com a
proibição. O que nos salvou foi uma montagem de “O amante de madame Vidal”, cujo
sucesso pagou as dívidas. Mas o desespero após a censura foi tanto, pelo
prejuízo e pelo medo de uma retaliação mais violenta, que sequer guardamos a
documentação da peça.
Entre as justificativas dadas pelos
censores à produção havia a suspeita de que a montagem teria sido financiada
por comunistas, direto de Moscou.
— Cozinharam a gente por muito tempo
na Censura porque não queriam caracterizar a intervenção à peça como proibição,
e sim como um abandono da nossa parte, pela incapacidade de sustentar a
produção — acusa Ruy, lembrando que a coreografia do espetáculo era do
bailarino tcheco Zdenek Hampl (1946-2007).
Com cenas de batalha, a peça foi
cenografada por Hélio Eichbauer, que assinava ainda os figurinos, ao lado de
Rosa Magalhães. Calabar não aparece em cena. Os feitos do personagem que se
aliou aos holandeses contra os portugueses são cantados por figuras também
reais, como Mathias de Albuquerque, Felipe Camarão e Maurício de Nassau. Mas a
trama se debruça sobre a ligação entre ele, que conhecia as entranhas das matas
brasileiras, e os invasores vindos da Holanda, em meio a conflitos contra
Portugal pela posse do Brasil. Por isso, segundo a Censura, “os responsáveis
pela peça se situam entre os que optariam de bom grado pela colonização
holandesa em detrimento dos portugueses”.
“No tempo mais duro da Censura havia
sempre uma história oficial que a gente sabia não corresponder à verdade”,
disse à época Chico Buarque, atualmente envolvido na produção de um novo
romance.
Orquestração de Edu Lobo
Intérprete de Ana de Amsterdam, Betty
Faria era um dos rostos principais de uma trupe formada por Hélio Ari, Antônio
Ganzarolli, Lutero Luiz, Odilon Wagner, Flávio São-Tiago e Anselmo Vasconcelos.
A orquestração era comandada por Edu Lobo. E entre os músicos estava o pianista
Tenório Jr., que desapareceu em 1976, na Argentina (sob ditadura).
— Numa noite, 48 pessoas ficaram
desempregadas — lembra Betty. — Ensaiamos em Ipanema, onde hoje é a Casa de
Cultura Laura Alvim, numa animação plena. Aí, na véspera, o veto chegou. Foi
ridículo.
Até 13 de novembro de 1973, o elenco
ensaiou, com a esperança de que os advogados da produção pudessem reverter a
decisão da Censura. Mas o esforço foi em vão.
— Confesso que, quando a interdição
veio, não estávamos no ponto, musicalmente — admite Dori Caymmi. — Eu tinha
invertido o ritmo da música “Ana de Amsterdam” e tinha medo de atrapalhar a
Betty. Mesmo assim, as músicas que fizemos ficaram célebres.
Caymmi se refere a canções que, no
próprio ano de 1973, foram gravadas no disco “Chico canta”, como “Tatuagem”,
“Tira as mãos de mim” e “Fado tropical”, que, no LP, inclui versos declamados
com a voz do próprio Guerra.
— Originalmente, o disco se chamava
“Chico canta Calabar”, mas os censores vetaram pelas iniciais, CCC, que
poderiam fazer alusão a Comando de Caça aos Comunistas. O nome Calabar foi
proibido de ser mencionado, pois, segundo eles, evocava traição. E, quando
gravamos o disco, a palavra “sífilis” teve que sair de “Fado tropical”. No
disco original, em vez de “sífilis” ouvia-se um chiado, algo como “shishsishs”
— conta Guerra, nascido em Moçambique, há 81 anos.
Lançado com uma capa dupla, projetada
pela artista Regina Vater (e que serviu de base para a arte que ilustra a capa
do Segundo Caderno), com o nome “Calabar” pichado num muro, o LP do musical foi
proibido e relançado, ainda em 1973, com outra capa (branca) já com o título
“Chico canta”. No encarte original, a canção “Vence na vida quem diz sim” veio
sem a letra, que foi censurada, e “Bárbara”, que escancara a primeira relação
lésbica na MPB, foi mutilada no verso “no poço escuro de nós duas”. O livro da
peça também foi patrulhado, mas sobreviveu nas livrarias, foi adotado em
escolas e está na 34ª edição.
— Uma vez, eu fui chamado para fazer
um debate sobre o livro num colégio. Cheguei lá crente que ia discutir com
estudantes maduros. Quando vi, era uma turma com meninos entre 9 e 12 anos —
diz Ruy, que irá montar a peça com a ajuda dos produtores Rafael Cannigia e
Diogo Oliveira.
Direito à rebeldia
Sete anos após a censura, em 24 de
janeiro de 1980, o texto foi anistiado e liberado para uma montagem no Teatro
São Pedro, em São Paulo, com Martha Overbeck, Othon Bastos e Renato Borghi no
elenco e direção do próprio Peixoto. A peça estreou quatro meses depois. E
outras montagens se seguiram. Mas só agora seu criador vai pôr as mãos na trama
novamente.
— É a primeira vez que enfrento o
texto depois de tê-lo escrito com Chico — diz Guerra, que também se prepara
para rodar, no início de 2014, o longa “Quase memória”, adaptação do livro
homônimo de Carlos Heitor Cony, com Murilo Benício como protagonista. —
Escrachado como uma sátira da História, “Calabar” preservou seu substrato
analítico sobre o direito do indivíduo à rebeldia, à liberdade ideológica.
Cortes notáveis no teatro:
“Rasga coração”
Concluída em 1974, a peça de Oduvaldo
Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha, ficou cinco anos proibida. Nesse período,
se tornou um dos textos nacionais mais lidos e discutidos do país, até ser
encenada por José Renato (1926-2011) em 1979, com Raul Cortez (1931-2006) no
papel de Manguary Pistolão.
“Patética”
Apreendido antes de se tornar
público, em concurso de dramaturgia em 1977, o texto de João Ribeiro Chaves
Netto ficou proibido até 1980 por abordar a morte do jornalista Vladimir
Herzog, em 1975, nos porões do DOI-CODI. Chaves era cunhado de Herzog.
“Prova de fogo”
Texto de estreia de Consuelo de
Castro, cronista de conflitos da classe média, a peça foi levada para o Teatro
Oficina em 1968, mas vetada por falar do movimento estudantil. Circulou o país
em leituras clandestinas. Só em 1993 foi montada, por Aimar Labaki.
“Abajur lilás”
Escrita por Plínio Marcos (1935-1999)
em 1969, auge da repressão, a peça, com foco no universo das garotas de
programa, seria montada no mesmo ano por Paulo Goulart, mas foi proibida. Em
1975, Antônio Abujamra tentou reviver o texto, de novo vetado. A liberação só
veio em 1980.
Rodrigo Fonseca
O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário