Chamado de ‘vendido’ por participar de um comercial de refrigerante, artista transforma episódio em disco ao lado de músicos da nova geração
RIO - Na Irará dos anos 1940, o
menino Antônio José Santana Martins ouvia das tias comunistas a recomendação,
ao sair de casa com dinheiro no bolso para gastar em uma guloseima qualquer:
“Pode comprar gasosa (refrigerante), mas só guaraná. Não tome Coca-Cola de
jeito nenhum, porque ela é o capitalismo”. Em março de 2013, o conselho voltou
a ecoar na cabeça do moleque, agora um respeitável senhor de 76 anos (nem tão
respeitável, nem tão senhor, ainda um tanto moleque) conhecido como Tom Zé. Um
comercial da Coca-Cola do qual ele é o narrador gerou uma enxurrada de críticas
nas redes sociais que o tachavam de “vendido”, “americanizado”, “traidor”,
“velho bundão” e o acusavam, dizendo que ele agora, em vez do samba, “tá estudando
propaganda” (uma referência a seu clássico disco “Estudando o samba”).
Tropicalisticamente digeridos,
os xingamentos foram recortados e colados nos versos de “Tom Zé mané”, uma das
faixas de “Tribunal do feicebuqui”, EP com cinco faixas (leia trechos abaixo)
no qual o artista lança seu olhar sobre a polêmica — disponível a partir de
amanhã em http://www.tomze.com.br/.
Feito com nomes da nova geração como Emicida, Tatá Aeroplano, O Terno,
Filarmônica de Pasárgada e Trupe Chá de Boldo, o EP é o ponto de partida de um
álbum completo que deve sair entre agosto e setembro (quando será editado
também um compacto em vinil de “Tribunal do feicebuqui”).
Apesar de nascer de um movimento
de reação às críticas, o disco não é uma resposta raivosa a elas, ou mesmo uma
resposta, como esclarece Tom Zé:
— Todas as músicas são
relacionadas à literatura da internet surgida dessa polêmica, seja falando bem
ou mal de mim, tudo tratado da mesma forma. Prezo as críticas e os elogios com
o mesmo valor, não acho que os comentários negativos sejam patrulha ou nada
parecido.
Inicialmente, porém, Tom Zé não
viu nas críticas (e nas defesas e ponderações surgidas num segundo momento)
estopim para criação. No dia 8 de março, ele escreveu em seu blog, na sua
primeira manifestação sobre o caso: “Perco o sono por causa do assunto”.
Profundamente chateado com a repercussão, ele ouviu a sugestão do jornalista
Marcus Preto, que prepara a biografia do compositor: por que não transformar
aquilo tudo num disco, um novo “Imprensa cantada” (álbum de 2003 feito num
procedimento usado em diversos momentos de sua carreira, de canções criadas a
partir de assuntos do momento, quase recortes de notícias)?
A ideia fermentou, e na
madrugada seguinte, entusiasmado, Tom Zé conversou com Marcus sobre a
possibilidade de convocarem músicos jovens para fazer com ele o disco.
— Liguei para quem já havia me
dito que adorava Tom Zé ou que eu achava que podia ter sido influenciado por
ele — conta Marcus. — Marcelo Segreto (da Filarmônica de Pasárgada), por
exemplo, estava compondo uma música chamada “Estudando Tom Zé” quando o chamei.
E me mostrou um funk carioca que tinha feito a partir da visão de Tom Zé sobre
o gênero.
O numeroso grupo de artistas
ocupou o estúdio que Tom Zé mantém num apartamento do prédio onde mora,
transformando o local numa usina de criação. De espírito familiar, ressalta o
baiano:
— Todo dia, todo mundo aqui,
parece aquela casa que tem 15 filhos e 18 netos — brinca Tom Zé. — Todo mundo
dando penada em tudo. Você sabe como é a convivência com os jovens: se a gente
pensa que é sabido, tá fodido. Tem que estar ciente de que eles sabem demais.
Mesmo que seja para discordar deles.
Os arranjos ficaram nas mãos dos
“meninos”, com “penadas” de Tom Zé, que também encomendou a eles músicas (dando
os motes) ou propôs parcerias. O EP começa com os xingamentos de “Tom Zé mané”,
de Segreto, Tatá Aeroplano, Gustavo Galo (da Trupe Chá de Boldo), e Emicida.
O disco segue com “Zé a zero”,
de Tom Zé, Segreto e Tim Bernardes (O Terno), que cita diretamente a polêmica
(“A copa aqui co qui cale?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo
propaganda do Tom Zé”). Ao comentar a música, Segreto revela um tanto da
mecânica do encontro com o compositor de Irará:
— A letra que mandei era: “Ô
rapá qualé que é/ Era a Copa Coca-Cola fazendo propaganda pro Tom Zé”. Ele
musicou pegando umas sílabas, repetindo, criando outros sentidos com as
aliterações. Seu modo de trabalhar é muito livre.
“Taí”, que tem uma batida
estilizada do tamborzão do funk carioca, era um jingle que Tom Zé compôs para o
guaraná Taí (da Coca-Cola, aliás), quando trabalhou na agência de publicidade
DPZ por seis meses. A melodia é a mesma de “Ta-hi”, marchinha de Joubert de
Carvalho que se tornou clássica na voz de Carmen Miranda. Ela ganhou versos
adicionais de Segreto.
Tim Bernardes compôs “Papa
Francisco”, que canta com Tom Zé. Trata-se de um bem-humorado pedido de perdão
à Sua Santidade. O pecado? “O povo, querida, com pedras na mão/ Voltadas contra
o imperialismo pagão”. Num arranjo à la Mutantes, referências à
tropicalista “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso (“Já não penso mais em
casamento/ Mas se tomo Coca-Cola acho que estou me vendendo”).
Acanção “Irará iralá”, que fecha
“Tribunal do feicebuqui” (nome extraído do rap que Emicida faz em “Tom Zé
mané”), é a que tem a ligação menos óbvia com o caso. Num arranjo que bebe nas
trilhas western spaghetti de Ennio Morricone, a faixa, só de Tom Zé, lista
nomes de personagens da cidade, o cenário que formou o artista (“Renato, filho
de dona Ceci/ Não fosse ele eu não tava aqui”).
— Na voz das meninas ficou uma
coisa estranhíssima, um iraraense quebra-língua, meio paulista, meio imitando
sertanejo — diz Tom Zé.
Irará aparece em muitos versos
dos novos parceiros de Tom Zé. Além disso, durante a confusão gerada pela
campanha para a Coca-Cola, o artista decidiu doar o cachê do comercial para a
banda da cidade.
— Sonho fazer o lançamento do
disco lá, com todos os músicos que participaram dele.
“Irará iralá” também faz a
ligação com o álbum de dez faixas que o artista prepara com o mesmo grupo de
músicos — que tem ainda Daniel Maia comandando a mesa de som. Ela é a única que
ficará no disco, descrito por Tom Zé como a “parte freudiana” da discussão em
torno do caso Coca-Cola.
— Sou eu no inferno em que sou
duplamente atacado pelo interesse de lealdade aos ideais e pelo interesse por
fama, beleza, vida luxuosa — explica.
Várias canções do futuro disco
serão recriações de músicas inéditas encontradas por Tom Zé numa fita de 1972.
Ele as entregou aos jovens parceiros para que eles trabalhassem nelas à
vontade. Só uma é de 1982, “Pour Elis”, que o baiano fez sobre um texto de
Fernando Faro para Elis Regina.
— Milton Nascimento deve cantar
essa — adianta.
Há ainda uma que Tom Zé pediu a
Segreto, “Guga na lavagem”, uma carta a seu irmão.
— Passei 30 anos na mão de
analistas, os psiquiatras de doido manso. Augusto sempre aguentou a barra sem
isso, mas ano retrasado teve uma fossa muito grande. Por uma herança, a família
brigou com ele, que foi se isolando, sem se cuidar, sem sair... Falei com
Segreto, que me deu uma letra linda. Mostrei a música para Guga, que
imediatamente se animou, falou que estará na próxima festa da lavagem de Irará.
O parceiro Segreto resume a
ideia que atravessa “Tribunal do feicebuqui”, o EP e o álbum.
— A questão não é defender ou
atacar Tom Zé. É incorporar essa tensão entre crítica e aceitação.
Veja trechos de letras:
‘Tom Zé mané’
(Marcelo Segreto/Gustavo
Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
Vendido vendido vendido
A preço de banana
Já não olha mais pro samba
Tá estudando propaganda (...)
Que decepção
Traidor, mudou de lado
Corrompido, mentiroso
Seu sorriso engarrafado
‘Zé a zero’
(Tom Zé / Marcelo Segreto / Tim
Bernardes)
Tem sabor abacaxi
Mais potente que o chá
O xarope é Xiquexique
Tudo made in Irará
O Dodó, como é que é?
A copa aqui co qui cale?
É coco colá
Aqui copa coca acolá
Fazendo propaganda do Tom Zé
Zé a zero fim de jogo
Na garrafa uma canção
Foi jogada no oceano
Pra chegar no coração
Mas navega lentamente
Pois é indie e dependente
Nada pela contramão
‘Papa Francisco’
(Tim Bernardes)
Papa Francisco, vem perdoar
O tipo de pecado que acabaram de
inventar:
O povo, querida, com pedras na
mão
voltadas contra o imperialismo
pagão
Sou a garotinha ex-tropicalista
Agora militando em um movimento
Já não penso mais em casamento
Mas se tomo Coca-Cola acho que
estou me vendendo
LEONARDO LICHOTE
O GLOBO
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