Na fase mais cinza da ditadura, da onipresença implacável da censura, foram proibidos discos de artistas que até então, se não eram favoráveis aos militares também não lhe faziam apologia. Estes foram censurados ainda mais do que os notórios desafetos do regime, alvos prediletos dos censores, como Chico Buarque. Um destes neosubversivos foi o potiguar Leno, da dupla com Lilian, de imenso sucesso na Jovem Guarda (Pobre menina, Devolva-me). Em carreira solo desde 1968, ele emplacou com canções ainda mais inocentes e cândidas (A festa dos seus quinze anos, A pobreza). Em 1971, no entanto, Leno surpreendeu, negativamente, “seu” Evandro Ribeiro, o todo poderoso homem da CBS (atual Sony Music), quando lhe entregou a fita do que seria seu terceiro disco solo.
Já havia demorado bastante para um novo LP, quase três anos, quando a praxe era um disco a cada 12 meses. Pior. O disco chamado Vida e obra de Johnny McCartney, não trazia uma única faixa candidata a hit, ao menos como as fãs do cantor estavam acostumadas. Uma delas simplesmente se intitulava Sr. Imposto de Renda: “Sr. Imposto de renda/que renda o sr.tem me imposto/em cada posto que eu passo/o sr.quer que eu me renda/eu me rendo ao seu imposto/sr.imposto de renda/eu me rendo ao seu imposto”. Inacreditável,um cantor conhecido pelo lirismo de suas baladas pop surgir com um música intitulada Pobre do rei (Marcos e Paulo Sérgio Valle). Para Evandro Ribeiro, que deu as cartas durante muitos anos na CBS, o “rei” logicamente referia-se a Roberto Carlos, colega de Leno na CBS. Para a censura, o “rei” era o general no poder Garrastazu Medici.
Seu Evandro deve ter ficado ainda mais estupefato ao conferir nos crédito os nomes do carioca Renato Barros, o guitarrista e vocalista do Renato e seus Bluecaps, produtor e autor de sucessos para Leno, e do baiano Raulzito, produtor e compositor de sucessos como Tudo o que é bom dura pouco, um hit com Jerry Adriani, fornecedor de composições para vários ídolos do iê iê iê. Raulzito, ou Raul Seixas, foi o parceiro de quase todas as canções de Vida e obra de Johnny McCartney. Algumas das músicas Raulzito gravaria, com letra diferente, quando se tornou famoso como Raul Seixas.
O disco é uma dos mais bem resolvidos trabalhos do udigrudi e psicodelia cariocas dos anos 70. Tem participação de uma das bandas mais importantes do rock nacional de então, A Bolha, dos vocais do Trio Ternura, Marcos Valle, dois integrantes do grupo mais famoso do Uruguai, Los Shakers, dos Golden Boys, dos irmãos Renato e Paulo César Barros, e de Raul Seixas em várias faixas. Com bases tocadas por Leno e Raul Seixas, Vida & obra de Johnny e McCartney estreou a novíssima mesa de oito canais recém-adquirida pela CBS, a única do país. Na faixa Peguei uma Apollo, Raul Seixas tocou para os integrantes de A bolha um disco da banda de hard rock americana Mountain, queria algo assim. “As sessões rolaram bem, mas o técnicos de som ficaram enlouquecidos com o som sujo, distorcido. Eles queriam que a gente abaixasse o volume. E dizíamos para eles. Este não é o nosso som, e muito menos o som de vocês”, lembra Renato Barros.
Muitas canções tinham potencial radiofônico, mas a censura cismou com cinco faixas, que foram proibidas. A direção da CBS ainda mais cismada, decidiu arquivar o projeto. Ainda lançou um raríssimo compacto duplo, e pela primeira vez, desde 1966, Leno lançava um disco que nem vendeu bem, nem foi tocado no rádio. A CBS não se limitou a arquiva-lo. Avisaram que a fita seria apagada: “Fiquei com tanta raiva, que rescindi o contato com a gravadora, e fui para a Phillips”, conta Leno. Oito meses ele voltaria a CBS, e retomaria a carreira, na mesma linha adulta, embora com letras mais amenas.
DESCOBERTA
Em março de 1994, pesquisando para um livro que escrevia sobre Jovem Guarda, o carioca Marcelo Fróes encontrou no depósito da CBS, em Acari as fitas, supostamente apagadas de Vida & obra de Johnny McCartney. As gravações foram tratadas, remasterizadas, receberam alguns overdubs, por Leno em seu estúdio doméstico. A Sony Music, sucessora da CBS, porém, não se interessou em lançar o disco. Na época, Marcelo Fróes não tinha criado ainda o selo Discobertas. Leno abriu o selo Natal Records para lançar o disco que Fróes chama de o elo perdido do rock brasileiro, que antecipa tendências e sonoridades. Vida & obra de Johnny McCartney tem 45 anos de gravado, e 20 de lançado. Merecia uma reedição.
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