Seria apenas um disco com Zizi Possi em sua
interpretação luxuosa de músicas consagradas, gravadas ao vivo em 2012, se Tudo
se Transformou (Gravadora Eldorado) fosse tão somente um disco. Mas, a essa altura,
é bem mais que isso. Aos 58 anos, sem um novo trabalho desde que sofreu uma
sequência de perdas familiares e enfrentou sérios problemas de saúde que quase
a conduziram ao "segundo andar", Zizi pode ver o mesmo lançamento,
que será feito com um show dia 19, na casa Net São Paulo, como uma retomada de
vida. Mas sem projetos nem ambições. Ela tem voz para tudo, menos para
responder sobre como será o amanhã.
Quando escolhe a
canção do Paulinho da Viola, Tudo se Transformou, para dar nome ao disco novo,
você está falando de você?
Sim, não
existe uma divisão da Zizi e da Maria Izildinha (seu nome de batismo). E todas
as minhas mudanças internas se refletem nos aspectos da minha vida. A profissão
talvez seja o aspecto mais transparente. Sem cantar, minha alma não sobrevive,
eu preciso disso.
Onde
estão estas mudanças?
Desde a
minha idade até o próprio mercado da música. Nos anos 70 80, a música fazia um
grande capital girar porque tinha conteúdo. Mas foi como no futebol. Na época
de ouro, a gente tinha Pelé, Tostão, Jairzinho. Era o tal futebol arte. Ninguém
mais chegou com o amor que aquele time tinha. Então, lá pelos anos 80, quando a
indústria começou a ser sugada pelas grandes corporações, passou a circular
tanto dinheiro que elas perderam a característica de gravadora. Quem gosta de
música hoje tem que procurar música em qualquer lugar, menos na televisão. Está
tudo tão repetitivo, tão igual, a poesia é... Desculpe, não quero esculhambar
ninguém, mas como intérprete, dá um vazio existencial tão grande... Eu digo,
meu Deus, será que eu vou ter que compor as minhas próprias músicas? Eu não
tenho essa capacidade, nunca trabalhei meu lado poético, eu preciso dos
compositores, onde é que eles estão?
É esse o
recado que você manda quando praticamente só regrava músicas conhecidas?
Não, eu
não estou fechada com ninguém, nenhuma turma, estou fechada com a música. Mas
hoje não encontro nas poesias nenhum reflexo daquilo que estamos vivendo. Vejo
que há uma poesia que reflete um determinado grupo de pessoas que pode ser
grande em número, mas e daí? Essa poesia não melhora a vida de ninguém. Isso
não é cultura, é entretenimento. Eu me sinto muito sozinha hoje em dia. Estou
em um grupo, em uma minoria. E eu, mais uma vez, me retenho. Não tenho a mesma
gana de provar coisas para mim mesma, estou em outro movimento. Então, tudo se
transformou, dentro e fora de mim.
Você teve
sérios problemas de saúde. Pode falar sobre isso?
Seriíssimos,
quase fui para o segundo andar. Eu tive um escorregamento vertebral por causa
de uma hérnia. Fiz uma cirurgia e ocorreu algum problema durante os
procedimentos. Quando retirei os pontos, começou a sair um líquido pela
cicatriz, uma coisa terrível. Eu tinha dores de cabeça horrorosas. O liquor, o
líquido do cérebro, encontrou uma saída pela cicatriz e começou a jorrar para
fora do corpo. Fiquei quatro dias de cabeça para baixo. Coloquei dreno, não deu
certo. Tive de fazer uma segunda cirurgia neurológica para achar o nervo
danificado. Quando voltei para casa, acabei tendo quatro focos de infecção e
tive de voltar ao hospital. Aí tive de ficar deitada sem me mexer. Fiz uma
terceira cirurgia, onde o médico retirou os focos mais importantes, e fiquei
mais 40 dias sem poder me mexer. Coloquei um dreno debaixo do seio e fiquei
mais quatro meses tomando antibióticos, um litro por dia. Aprendi a cantar com
o dreno. Eu precisava sobreviver.
E
sobreviveu...
Um dia,
no hospital, eu estava com tanta saudade de sentir o vento, de sentir os
cheiros, que pedi para a minha assistente comprar folhas de alecrim e de
hortelã. Era só para eu cheirar.
Você
sofreu com perdas importantes no mesmo período, não?
Meu
irmão, o Neco, morreu em junho, quatro meses depois de eu sair do hospital, em
2010. Meu pai havia falecido em 2009. Minha mãe ficou doente em 2012 e também
se foi. Não foi fácil.
Ao voltar
agora, qual é o tamanho de sua vontade?
Para
conseguir sair da depressão pela qual passei, eu tive que aprender uma coisa:
só desejo cantar. Aprendi a não querer tudo o que gosto. Gosto de um monte de
coisa, mas não desejo tudo o que gosto.
Por medo?
Não. Quer
um exemplo: por do sol. Eu adoro por do sol, mas não posso comprá-lo para
colocar na sala. Passei por fases tão áridas, de ter de cantar com um catéter,
de viajar de cadeira de rodas... Sabe esse movimento de mão que estou fazendo
agora? Eu não podia fazer.
Os
ouvidos brasileiros não são complacentes demais com as desafinações?
Algumas
cantoras defendem que o que vale é a emoção, mesmo que ela venha desafinada.
Meu ouvido dói quando algo está fora. Mas, olha, tem uma música, por exemplo,
que gravei com Ivan Lins no (projeto) Cantos e Contos, Afonsina e El Mar, na
qual eu errei a letra logo no começo. Eu jamais permitiria passar isso, mas
aquele foi um momento tão bonito, mas tão bonito, que percebi que tirar,
desfazer aquilo por causa de um erro que não ofendia a poesia, seria demais. A
desafinação também é muito íntima e é relativa aos ouvidos de quem canta. E o
compromisso de melhorar está em cada um. Acho que você pode ouvir uma canção
como um crítico esperando um erro para bater o martelo ou para se emocionar. Há
desafinadas que podem mesmo cortar o clima, mas outras que apenas acontecem.
É um
desafio maior gravar canções que já foram consagradas por vozes de grandes
cantoras?
Olha, eu
me lembro que, quando vim para São Paulo, me deu vontade de gravar O Que É o
Que É, do Gonzaguinha. Uma voz dizia: "Cara, Beth Carvalho gravou, Simone
gravou, Bethânia gravou. Você está louca!" E outra dizia: "E daí,
quantas pessoas já não gravaram Under My Skin?" Por que não regravar?
Porque outras pessoas já a cantaram antes? Isso é ego. E o ego tira da gente as
melhores oportunidades da vida. Quando você faz aquilo por inteiro, se entrega,
sempre fica bom.
Você
falava sobre as gravadoras. Elas sempre foram alvejadas por seus contratados,
tratadas como vilãs, mas não foram essas companhias que criaram uma geração de
cantores e compositores considerada insuperável até hoje? Será que a música
brasileira era feliz e não sabia?
Eu digo
isso (risos). Eu era feliz e não sabia (risos). Havia sim o patrocínio de um
trabalho. Por muito tempo, as gravadoras propiciaram um grande momento para a
arte. Mas, a partir do momento em que o dinheiro surgiu com mais força, muitos
outros interesses pegaram carona. Quando uma dessas gravadoras era vendida para
uma grande corporação que comercializava televisores e aparelhos eletrônicos,
como a Sony, a música também tinha de se encaixar a esse modelo. A Warner
trabalha com filmes, com parques temáticos. A Universal também. A música passou
a ser para elas mais uma atividade comercial, não a principal. O caráter mudou
e, nesta fase, começaram as reclamações dos artistas porque os diretores
passaram a se preocupar com metas.
E a
internet, que seria a vingança da arte, não consegue produzir nomes populares
de alcance e qualidade, como as gravadoras faziam nos anos 70. Em algumas
gerações, não deveremos mais ter shows em estádios...
Mas eu te
pergunto: e quem é que no futuro vai sair de casa para assistir shows?
Estadão
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