A PRISÃO DE ANTÔNIO
SILVINO
O aprisionamento de
Lampião não se me afigura impossível. Nada importa diga ele que prefere a
morte. Antônio Silvino também o dizia, mas, apenas se viu baleado, foi o
primeiro em fazer questão de mansamente se entregar à justiça. Restabelecido
ulteriormente, voltaram-lhe no presídio os ímpetos brutais, como na manhã em
que, entre descomposturas do calão mais vil, sacudiu um pão na cara de um
desembargador.
Quando a captura de
Lampião parece a tanta gente sonho irrealizável, vem a propósito recordar como
se deu a de seu terrível predecessor.
O que desgraçou
Antônio Silvino foi a perseguição sem tréguas que lhe moveu uma de suas vítimas
mais humildes. Bem diz o povo que “não há inimigo pequeno” e que “mutuca é que
tira boi do mato”…
José Alvino Correia
de Queiroz era obscuro comerciante no sertão de Pernambuco, quando Antônio
Silvino lhe saqueou o pequeno estabelecimento. Reduzido à miséria, jurou
vingar-se e entrou a polícia daquele Estado. Acreditaram nos seus propósitos e
fizeram-no sargento.
Inteirado de que
Silvino transitaria por certa faixa do município de Taquaretinga, o Sargento
Alvino buscou informações de João Vicente e Joaquim Pedro, moradores naquelas
paragens. Ambos negaram a pés juntos ter qualquer conhecimento a respeito. Mas,
tão jeitosamente o miliciano conduziu as investigações, que a esposa de João
Vicente o orientou:
- Quando o Sr.
chegar à casa de nosso vizinho, o Joaquim Pedro, e encontrar as mulheres
torrando galinhas ou fazendo comedoria de sobra, pode apertar o pessoal que o
“capitão” Antônio Silvino está escondido perto, no mato…
No dia esperado, 27
de novembro de 1914, os policiais, sob o comando do Alferes Teófanes Torres e
do Sargento José Alvino, estavam no local referido, de nome Lagoa Laje.
Assim que penetrou
na residência de Joaquim Pedro, o Sargento Alvino se encaminhou diretamente
para a cozinha, atrás de cuja porta se lhe deparou pendurada uma banda de
ovelha. E viu chegar desconfiado, pelo quintal, um rapazola com um tabuleiro à
cabeça, cheio de tigelas, colheres e pratos. Interrogado, o recém-vindo
explicou, titubeante, que havia ido deixar comida a uns “trabalhadores”, num
roçado.
Concomitantemente,
o Alferes Teófanes submetia Joaquim Pedro a interrogatório, e este negava que
soubesse do paradeiro de Silvino.
Aparece o sargento
e, depois de falar na ovelha morta e de mostrar o tabuleiro com os restos de
comida, pede permissão para forçar o velho sertanejo a não continuar mentindo.
Ato contínuo, tranca-lhe, numa alcova, a mulher e os filhos e ordena que os
soldados desembainhem os sabres.
Nesse momento, mais
nervosa, uma filha do ameaçado pede, da alcova:
- Meu pai, por
caridade, descubra logo!
Joaquim Pedro roga
que não lhe batam e justifica-se, alegando que logo não disse a verdade por
temer a vingança de Silvino, no caso de a polícia o não prender ou matar. E
confessa que o celerado está escondido não longe dali.
Eram cinco horas da
tarde e urgia assaltar os cangaceiros, antes que a noite sobreviesse.
Sob as ameaças de
ser liquidado, se desse o menor sinal aos bandidos, Joaquim Pedro vai mostrar o
esconderijo deles. Com todas as precauções imagináveis, a tropa se aproxima da
malta criminosa.
Antônio Silvino
estava deitado numa pedra, sobre a qual se debruçava copada oiticica. Perto,
divertiam-se alguns de seus cabras, a jogar um sete-e-meio. Ao ouvir a primeira
descarga, Silvino gritou, motejante:
- Espera aí,
rapaziada! Deixem, ao menos, os menino acabar esta mão!
Mas o fogo irrompeu
violento e sem intermitências, dos dois lados.
Com o cair da
noite, o tiroteio deixou de ser correspondido. O Alferes Teófanes e o Sargento
Alvino acreditaram que Silvino tivesse fugido. Suspeitando, todavia, que ele se
quisesse vingar de Joaquim Pedro, foram entrincheirar-se na casa deste.
Coisa bem diversa
se passava. Silvino fôra atingido por uma bala nas espáduas e o seu companheiro
Joaquim Moura tivera quebrada uma perna. Os demais cangaceiros se embrenharam,
desorientados, na caatinga, favorecidos pelo negrume da noite.
Estando a perder
muito sangue, Silvino convidou Joaquim Moura a se entregarem, mas este repelira
o convite e, depois de dizer que macaco do Governo não tinha o gosto de
botar-lhe as mãos em riba, ele vivo, suicidou-se com um tiro na cabeça.
Impressionado ainda
mais com o trágico fim do último assecla que lhe restava, Silvino despojou-se
das armas e arrastou-se para a casa da mulher que ele ignorava tivesse sido
quem o denunciara. O marido dela, João Vicente, a estava censurando por sua
leviandade, persuadido de que Silvino, sabedor da denúncia, lhes não perdoaria.
De repente, batem à
porta. Quando, de fora, uma voz anuncia que quem bate é Antônio Silvino, João
Vicente encomenda a alma a Deus, convicto de que vai morrer. É sua mulher quem
se afoita a atender ao chamamento.
Ao se abrir a
porta, aparece, à luz da lamparina, o vulto do grande salteador. Quase
desfalecido e com as vestes rubras de sangue, Silvino está escorado no portal.
- Capitão, que
horror é este?
- Mataram-me…
arqueja aquele que, acovardado, começava a expiar crimes sem conta.
Conduzido a uma
rede, ele pede que chamem a polícia. Vai alguém a Taquaretinga, mas não
encontra lá os soldados. Na confusão em que todos se viam, ninguém a princípio
se apercebeu de que os policiais poderiam estar pernoitando na fazenda de
Joaquim Pedro. À mulher de João Vicente ocorre agora essa possibilidade.
Despacham para ali o portador. Quando este bate à porta de Joaquim Pedro, os
soldados aperram as armas, crentes de que é Silvino quem chega. Aberta a muito
custo uma janela, o mensageiro dá contas de sua incumbência: vem avisar que
Antônio Silvino, sozinho, desarmado e gravemente ferido, está em casa de João
Vicente e quer entregar-se à prisão. O Alferes Teófanes suspeita que se trate
duma cilada e opina que se aguarde o raiar do dia. Tanto insiste, porém, o
Sargento Alvino que, afinal, o seu comandante se dispõe a ir ver Silvino. Ainda
assim, o recadista vai seguro pelos cós e advertido de que receberá uma
punhalada, ao primeiro tiro com que a tropa seja surpreendida.
Carcada com
cautelas a morada de João Vicente, houve grande alegria, quando se patenteou
aos olhos de seus perseguidores a mísera situação daquele que se gabava de que,
embora sem saber ler, governava todo o sertão! O Sargento Alvino parecia o mais
contente. Exigiu que se não fizesse o menor mal a Antônio Silvino e saiu, pelos
matos, a cortar umas folhas de quixabeira para lhe lavar as feridas.
Fôra destronado o
Átila bronco que, durante dois decênios, apavorara a gente matuta do meio-norte
e assoalhava não ser passarinho que morasse entre grades… Por trinta anos ia se
fechar atrás dele o portão da Penitenciária de Recife!
Foi à tenacidade do
Sargento Alvino, à sua argúcia e vontade firme de vingança que se deveu a
prisão de Antônio Silvino. Forçoso é, porém, reconhecer que colaborou
inestivavelmente nisso a indiscrição duma mulher.
Acontecerá o mesmo,
algum dia, a Lampião? Até na ruína dos cangaceiros terá aplicabilidade o
cherchez la femme?
Do livro “No Tempo de Lampião”, de Leonardo Mota
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