TEXTO
DE ALEXANDRE GURGEL SOB A ÓTICA DO MEU POEMA DEDICADO A POETISA SEVERINA
BRANCA.
A
poesia laudatória nordestina nos versos de Gilmar Leite, sob a luz do
Romantismo.
Por
Alexandre Gurgel
Mesmo
fazendo versos sem ciência do termo “laudatório”, alguns poetas nordestinos
cantam exaltando a vida, por vezes sofrida, de personagens do cotidiano
sertanejo, como se a literatura já fosse inerente n’alma do vate. O poeta
Gilmar Leite, natural do sertão de São José do Egito, cidadezinha pernambucana
às margens do Rio Pajeú, em seus versos, canta uma louvação a uma prostituta
que viveu na cidade nos idos de 70, chamada Severina Branca. No tempo em que as
meretrizes eram muito pobres ou de pouca beleza, vendendo o corpo para
alimentar seus filhos, muitas vezes de pais que não assumiam a paternidade, e
sem o amparo dos órgãos governamentais, Severina Branca foi a pioneira naquele
recanto sertanejo de pouca fartura.
Na voz
de Severina Branca, o poeta Gilmar Leite decanta a alma romântica do “eu
oprimido”, esmagada pela solidão e pela brutalidade do mundo. Uma espessa
melancolia se apossa dos seus versos, e por todos os lados vê-se o lado sombrio
e inútil da existência. Ao sentir que os seus vínculos com o mundo foram
rompidos, o poeta apega-se no próprio “eu”. Um “eu” incômodo, estranho, que
ameaça ora com o caos, ora com o êxtase, ao mesmo tempo, um “eu” angustiado,
incapaz de transformar o mundo. O poeta utiliza aspectos da literatura
romântica com gritos de subjetividades que confessam seus medos e
sofrimentos.
Gilmar
Leite verseja a inconformidade do artista romântico com o “mundo cruel” com uma
série de procedimentos de fuga, dando voz à Severina Branca, cujo silêncio da
noite é a única testemunha daquela vida de muitos pecados. Já que a sociedade
não quer escutá-la ou não sabe compreendê-la, já que ela está perdida numa
realidade incômoda e brutal, já que sua sensibilidade não possui força para
mudar o destino, resta-lhe apenas a tentativa de escapar dessa noite
silenciosa, abrindo seu coração para as amarguras da vida.
Uma
das características românticas é o “mal do século”, uma “enfermidade moral” e
não física. Resulta do tédio (“ennui”, “spleen”), mas não do tédio comum
(aborrecimento diante da chatice da vida). A concepção romântica aponta para um
aborrecimento desolado e cínico, que ressalta tanto a falta de grandeza da
existência cotidiana quanto o vazio dos corações sem esperanças. Estes
acreditam ter vivido todas as paixões e ter experimentado todos os abismos.
Severina Branca cria uma espécie de sentimento mórbido de insatisfação da vida
e de manso desespero, com a alma machucada de torturas. Algo próximo à sensação
de absurdo da vida, quando Severina roga a Deus para que sua vida seja levada,
terminada aquele sofrimento agourado por aves estrigiformes de hábitos
noturnos.
Em
contraponto ao presente insatisfatório, o poeta encontra elementos românticos,
constantemente no passado, com versos sublimes, delineando intelectualmente
seus valores. Esta condição de mito, onde Severina Branca é ovacionada, obedece
a uma tendência de fuga da realidade, pois, de acordo com os ideais românticos,
tanto o mundo medieval como o mundo infantil representa o paraíso perdido, uma
época de ouro na qual as criaturas seriam felizes. Pela nostalgia de um tempo
que os artistas do Romantismo desconheciam - caso do passado histórico -
nega-se o presente, hostil e causador de sofrimentos, conforme podemos ver na
narrativa do poeta Gilmar Leite.
Na
poesia romântica brasileira, há grande variedade métrica, de ritmos e de rimas,
indicando a liberdade de composição que os autores experimentam. Gilmar leite
começa a cantar as desventuras de Severina Branca usando um dístico, glosado e
rimado em versos decassílabos. O poeta faz uso intenso de adjetivos, em função
de sua força expressiva e de seu poder de qualificar uma numerosa gama de
sentimentos expressos no peito de Severina. Os adjetivos, segundo os
românticos, ampliam ao máximo a conotação emotiva das palavras, fixando
tonalidades e nuanças da natureza e das paixões humanas.
A
saudação aos heróis Dante e Virgílio, criando um vínculo divino entre o poeta e
o legado dos antigos aedos, serve como guia para contar a história daquela
mulher mitológica, que amargou as horas do ocaso, flamejadas nas manhãs do
sertão de Pernambuco. Ao longo do poema, Gilmar Leite usa uma linguagem
romântica, deixando a impressão de nobreza naquele sofrimento sem fim e dando
ênfase declamatória à Severina Branca, através de metáforas, hipérboles,
alegorias e outras figuras. De alguma maneira, o lirismo desse poeta
pernambucano alcançou o grau laudatório dos grandes poetas românticos,
conduzindo seus versos para o encantamento, revelado na voz de Severina Branca.
Observação
de Gilmar Leite: O mote abaixo, que é o titulo do poema, foi feito pela
poetisa/meretriz Severina Branca. Ele foi dado na década de 70, quando então
cantavam versos de improviso em São José do Egito, na barbearia de Zé Rocha, os
poetas repentistas Job Patriota e Zé Catota (ambos felecidos). Já descambando
pra meia noite, a poetisa perambulando pelas ruas da cidade chega ao recinto da
cantoria e fica assistindo aos vates em noite de inspiração. No momento do
silêncio das violas, enquanto os cantadores tomavam um aperitivo, alguém
presente na cantoria sugeriu que a poetisa desse um mote para os bardos
improvisarem. A poetisa/meretriz na sua angústia e dor disse o mote abaixo, que
por si só é um poema. Os cantadores improvisaram; só que os versos se perderam
entre as paredes daquela madrugada dos idos anos 70, sem haver nenhum registro
do que foi feito sobre o mote da poetisa/meretriz. Ela depois fez alguns, que
infelizmente se perderam na oralidade; outros poetas também fizeram, abordando
o tema. Eu nunca imaginei fazer um dia, pois pensava que o assunto já tinha se
esgotado. Mas certa noite, eu fui tomado pela inspiração e fiz os decassílabos
abaixo sobre o mote de Severina Branca. Hoje, Severina Branca reside num
povoado distrito de São José do Egito chamado “Mundo Novo”. Nos dias de feira
(sábado), antes dos primeiros goles de álcool a poetisa/meretriz ainda consegue
dizer alguns versos de sua autoria
O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras
Mergulhei
nos abismos infernais
Que
nem Dante deu passos com Virgilio
Na
procura de achar algum auxílio
Eu
sofri nos subúrbios marginais.
Vi o
ocaso nas horas matinais
Entre
os braços de estranhas criaturas
Os
contatos fortuitos às escuras
Ecoavam
com um sopro dum gemido
“O
silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Troquei
beijos com bocas amargosas
Sob as
luzes de um velho candeeiro
E dos
corpos senti estranho cheiro
Entre
as sombras de noites vaporosas.
Hoje
as marcas das dores horrorosas
São
sinais dos momentos de loucuras
Machucando
minh'alma com torturas
E
deixando o meu ser enlouquecido
“O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Inda
sinto o tremor da mão suja
Afagando
o meu corpo pecador
Ao
invés do prazer sentia dor
E no
peito uma voz dizendo fuja.
Entre
as brechas das telhas a coruja
Agourava
as minhas desventuras
Eu
gritava pra Deus lá nas alturas
Leve
logo este ser que é tão sofrido
“O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Muitos
homens chegavam embriagados
Dando
chutes na porta como loucos
Os
gentis para mim foram tão poucos
Eram
seres tristonhos, reservados.
Eu
perdi a noção dos meus pecados
A
miséria causa-me tonturas
Numa
vida com facas de agruras
Que
cortavam meu peito ressequido
“O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Sobre
a cama meu corpo se tremia
De
fraqueza, de fome e de sede;
Noutro
canto a filhinha numa rede
Quem
olhasse pensava que dormia.
Pois a
fome causava-lhe agonia
Lhe
roubando fagulhas de venturas
Eram
cenas cruéis de vidas duras
Condenadas
num mundo corrompido
“O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Hoje
eu vivo jogada ao relento
Sem um
teto sequer para dormir
O
passado, o presente e o porvir,
Me
jogaram no duro calçamento
Condenada
no frio isolamento
O meu
corpo só tem as ossaturas
Pra os
insetos fazerem aventuras
Ferroando
o que já foi consumido
“O
silencio da noite é quem tem sido
Testemunha
das minhas amarguras”.
Fonte:
Facebook Gilmar Leite
Pajeú da Gente
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