O primeiro manifesto
tropicalista, feito em Pernambuco, foi publicado há exatos 45 anos pelo Jornal
do Commercio, em plena ditadura militar
Em foto histórica, os responsáveis pelo manifesto tropicalista: Jomard Muniz de Britto, Celso Marconi e Aristides Guimarães
Senhoras com laquê nos cabelos e senhores
engravatados, ambos com convicções tradicionais tão firmes quanto o penteado
das senhoras, devem ter ficado atônitos ao ler o Jornal do Commercio de
20 de abril de 1968, num sábado como hoje, há exatos 45 anos. Na página 3, ao
lado dos filmes do dia, um título inusitado provocava os leitores de um Recife
essencialmente conservador: Porque somos e não somos tropicalistas.
Circulava na cidade o primeiro manifesto tropicalista do Brasil, um ataque
feito a seis mãos contra a repressão e caretice vigentes em um País cercado
pela ditadura militar. Um recado fragmentado em nove itens para as tais
“pessoas da sala de jantar”, que como na canção de Caetano e Gil, são ocupadas
em nascer e morrer.
A noite anterior à publicação havia sido de festa
no bar do Alves, no Mercado da Encruzilhada, onde o jornalista Celso Marconi, o
professor Jomard Muniz de Britto e o músico Aristides Guimarães foram celebrar
depois de assinar o documento na galeria Varanda, em Olinda. Os rostos dos três
estavam lado a lado – com Celso sendo “enforcado” por Jomar e Aristides – na
foto histórica que ilustrava a capa do JCno anúncio do manifesto,
publicado na íntegra no dia seguinte. O texto trazia porções de ácido no laquê
das senhoras desde o primeiro ponto, em que criticava o marasmo cultural da
província (“Por que insistimos em viver a dez anos da Guanabara e a um século
de Londres? Por fidelidade regionalista? Por defesa e amor às nossas
tradições?”). Ainda pediam: “A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra
a burrice! O impacto contra e mediocridade! O sexo contra os dogmas! A
realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo!
Tropicalistas de todo mundo, uni-vos”.
A postura dos rapazes foi criticada e renegada pela
província, que associava a atitude transgressora à homossexualidade, ainda um
monstro marginal no Recife de 1968. Se Celso Marconi foi recepcionado na
redação do jornal com uma uivada de “Bicha!” (sarro dos colegas, lembra),
Aristides, a frente do grupo tropicalista Laboratório de Sons Estranhos (LSE),
chegou a ser perseguido na Ponte Duarte Coelho, no Centro, mas por sorte
escapou num táxi. “Sentíamos a necessidade do novo. Com uma máquina de
escrever, em minha casa, em frente ao Hospital Militar, datilografamos o
manifesto em revelia à tal fidelidade regionalista”, lembra Jomard.
Celso, ainda amigo de Jomard, embora estejam
afastados, explica que o movimento é uma ideia que passa pela Semana de Arte
Moderna de 1922, encabeçada por Oswald e Mário de Andrade. “É algo que tem uma
continuidade. Tanto nós, pernambucanos, quanto Caetano e Gil, nos engajamos a
uma forma de pensar fora de qualquer molde acadêmico. Ser tropicalista era,
antes de tudo, ter uma postura contestadora da realidade”, defende o
jornalista, cuja casa em Olinda era a sede para as célebres festas
tropicalistas. Pedro Marconi, filho de Celso, tinha por volta de 10 anos à
época, mas lembra bem do que tocava no toca-discos das festas: Beatles,
Caetano, Gil, Rolling Stones, João Gilberto.
CAETANO, TROPICALISMO E PERNAMBUCO
Caetano veio ao Recife duas semanas depois da assinatura do manifesto pioneiro dos pernambucanos. Ainda sem articular maiores desdobramentos teóricos sobre o movimento, mas já mergulhado em sua “estética do sonho”, o baiano afirmou a Celso Marconi, repórter do JC à época, “que nem ele mesmo entende o que é tropicalismo, mas se tratava de um movimento que vai vingar, pois é de rebeldia a tudo que é quadrado”. Naquele mesmo mês de maio, depois de se uma aproximação com Jomard, Celso, Aristedes e outros tropicalistas da Paraíba e Rio Grande do Norte, Caetano e Gil assinaram o segundo manifesto tropicalista (ainda mais radical), também em Olinda, na Oficina 164, em exposição individual de Raul Córdula (que havia sido censurada na Paraíba).
Ainda naquele maio, começaria a ser gravado o álbum Tropicalia
ou panis et circencis, com Caetano, Gil, Gal, Nara Leão, Tom Zé e Mutantes,
guiados por Rogério Duprat. Ainda que não-oficial, a obra é tida até hoje como
o disco-manifesto do Tropicalismo, enquanto mal se sabe da existência dos
manifestos pernambucanos. Como registrado no livro Do frevo ao mangue,
Caetano admitiu ao pesquisador e crítico musical do JC José
Teles que uma das falhas de seu livro-formação (Verdade tropical) foi
não fazer referência aos recifenses. Em outra entrevista, o doce bárbaro
ressalta, mas diminui a importância do “quase-tropicalismo” nordestino: “Houve
essa colaboração, mas não era tão decisiva para a formação do tropicalismo. Eu
acho que seria melhor se tivesse sido mencionada, de toda maneira, mas não acho
que essa ausência se faça muito nociva. [...]Isso pode ser injusto com os
pernambucanos, mas não com o tropicalismo”. Para Jomard Muniz de Britto, não
houve nenhum problema na ausência de referências a ele e aos seus colegas na
obra: “Aquele é um livro sobre a formação de Caetano. Nós não fizemos parte de
sua formação, mas sim de sua transformação”.
AÇÃO CONTRA OS "TROPICANALHAS"
A manifestação do Tropicalismo no Recife foi essencialmente comportalmental, apesar de ter participação musical memorável com o Laboratório de Sons Estranhos, de Aristides Guimarães (LSE, segundo Jomard, “um alucinógeno mais forte do que o LSD”). Como deixava claro o segundo manifesto nordestino, sob o título de Inventário do nosso Feudalismo Cultural, era necessária e urgente “uma posição de radicalidade crítica e criadora diante da realidade brasileira hoje (1968)”. O combate era contra os “tropicanalhas”, os sujeitos “de atitude conservadora e purista em face dessa mesma realidade”. “Os Felicianos estão por aí. Infelizmente, o manifesto nunca deixou de ser atual”, pontua Jomard.
Ele lembra que a Tropicália não se encerrou em
1969. “É uma pesquisa contínua que Caetano, Gil, Tom Zé, nunca deixaram de
fazer. O tropicalismo é se jogar no experimental, transexperimental. É a arte
em processo permanente de invenção, sem ter o compromisso com a arte popular
nacional”, defende.
Para o professor de letras da UFPE Anco Márcio, até
o atrito entre movimentos distintos, como o Tropicalismo e o Armorial
(considerado por alguns como uma reação ao primeiro), foi ingrediente da maior
importância para a oxigenação da cultura brasileira.
“Quando observamos um movimento como o Manguebeat,
nos anos 1990, vemos o quanto ele tem do regionalismo de Gilberto Freyre, do
Tropicalismo de Jomard Muniz de Brito, da experiência do TPN de Hermilo Borba
Filho, de um certo imaginário da cidade criado pela poesia de João Cabral,
Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo, e da radicalidade de pensar a cidade, a
região e o Brasil de um Paulo Freire e de um Josué de Castro. Cada um desses
movimentos, tentou, ao seu modo, oferecer mais do que uma leitura do Brasil, do
Nordeste e do Recife. Eles buscaram, de maneira generosa, um projeto de futuro,
um projeto do que o Brasil deveria ser dentro do concerto das nações modernas”,
defende.
ENTREVISTA
Reflexões sobre o Tropicalismo
JORNAL DO
COMMERCIO - Qual a importância do manifesto no momento de sua concepção, no
Recife conservador de 1968, sobre uma ditadura?
ANCO
MÁRCIO - Para se
entender o contexto do Tropicalismo é necessário que se entenda o contexto de
um País e de uma cidade divididos. Seja pela dualidade direita/esquerda (ambas,
inclusive, conservadoras no que diz respeito aos costumes sociais), seja pelo
sentimento de orfandade que os movimentos das vanguardas pré-64 deixaram na
paisagem cultural do país e da cidade. O resultado é que existia uma maneira de
pensar o Brasil e o Recife antes de 64 e outro depois do Golpe Militar. No caso
do Recife, tínhamos, nos Anos 60, o MCP, o TPN, o Gráfico Amador, os filhos do
Atelier Coletivo, a Sudene, a Fundaj, a UFPE e sua Editora. Em suma: circulavam
e conviviam no mesmo espaço urbano: Gilberto Freyre, Lula Cardoso Ayres, Luiz
Costa Lima, João Alexandre Barbosa, Sebastião Uchoa Leite, Mauro Mota, Ariano
Suassuna, Hermilo Borba Filho, Valdemar de Oliveira, Carlos Pena Filho, Adão Pinheiro,
Samico, Celso Furtado, Evaldo Coutinho, Antônio Baltar, Francisco de Oliveira,
Paulo Freire, Maria do Carmo Tavares de Miranda, Joel Pontes, Luiz Mendonça,
Luiz Marinho, Vicente do Rego Monteiro, Maximiano Campos, César Leal, Francisco
Brennand, Paulo Cavalcanti, Aluísio Magalhães, Gastão de Holanda, Joel Pontes,
Orlando da Costa Ferreira, Osman Lins, Montez Magno, entre tantos outros nomes.
O fato, é que se Jomard Muniz de Brito, por um lado, é filho desse País e dessa
cidade pré-64 (particularmente do grupo que circulava em torno de Paulo
Freire), por outro, no quadro pós-Golpe, ele parece que não vai se identificar
com o que ele vai chamar no Manifesto Tropicalista de “esquerda festiva”,
aquela que vai ser responsável, a partir de então, por escrever e publicar
“’protestos’ puramente retórico-panfletários”. Mas ele também vai Lamentar “que
os da ‘nova e novíssima geração’ (a maioria pelo menos) continuem a se valer da
tutela sincretista, lusotropical, sociodélica, joaocabralina, t-p-n-ística,
etc. e tal.” E aqui entra uma crítica tanto ao Freyre do luso-tropicalismo
quanto ao teatro de Hermilo Borba Filho (o TPN) e à poesia de João Cabral. Essa
postura é no mínimo interessante, já que os tropicalistas baianos — Caetano
Veloso e Gilberto Gil à frente — não terão nenhuma ressalva ao TPN de Hermilo
(muito pelo contrário. Em 1966, Gilberto Gil viveu dois meses no Recife a
convite de Hermilo Borba Filho. Durante esse período, realizou espetáculos no
teatro do TPN, então situado na Avenida Conde da Boa Vista) e muito menos à
poesia de Cabral: referência para as várias vanguardas dos Anos 50 e 60. Mas
apesar desses ruídos programáticos entre o Tropicalismo recifense e o baiano,
creio que o ponto em comum entre ambos é, no campo artístico, a retomada da
antropofagia oswaldiana, e, no campo social, a busca pela liberação dos
costumes, visto com desconfiança tanto pela direita que estava no poder quanto
pela esquerda careta, proto-stalinista, que buscava tomar o poder.
JC -
Levando em consideração a atuação de Freyre pela tradição regionalista (com a
criação do Centro Regionalista do Nordeste e o 1º Congresso Regionalista do
Nordeste), em que medida esse pensamento esbarrou no tropicalismo, aberto ao
novo e ao estrangeiro?
AC - Em momento algum o regionalismo é refratário
ao novo. Pelo contrário. O pensamento Regionalista de Freyre se calça em cima
de três conceitos: o de Tradição, o de Região e o de Modernidade. A Tradição
encerraria os signos que traduziam a unidade cultural do País, a exemplo da
língua, dos valores cristãos, da culinária, da música, da arquitetura, da arte
em geral. Mas essa unidade se firma dentro da diversidade; no caso, a Região,
com suas particularidades sociais, econômicas, geográficas e culturais. Para
Freyre, a Tradição não exclui a Região e, sim, se complementam e se enriquecem
mutuamente. Assim, provido do conhecimento crítico desse patrimônio
sócio-cultural é que os brasileiros deveriam buscar no exterior as ideias que
nos conduziriam para a construção de um Brasil moderno. Ou seja, a Modernidade
seria antes uma ferramenta crítica para pensarmos os destinos da Nação
Brasileira do que algo acatado como um valor em si. Em Freyre, Tradição, Região
e Modernidade são conceitos que não convivem separadamente, um precisa do outro
para cumprir seu destino. Só assim, para ele, estariam estabelecidas, através
da conciliação entre o regional e o humano, a tradição e a experimentação, os
fundamentos para uma arte brasileira que, por sua vez, aspirasse à
universalidade. Talvez a divergência do Regionalismo com o Tropicalismo
jomardiano é que este, como a quase totalidade das vanguardas do século XX,
defende radicalmente “Tudo que for legitimamente NOVO”. Freyre nunca acreditou
e nunca tomou o novo e o moderno como valores em si. Do mesmo modo que ele nunca
acreditou que algo por se inscrever na Tradição ou na Região também seria
dotado de um valor superior aos promovidos pela modernidade. Na verdade, Freyre
viu a modernidade não por aquilo que é a sua camada de verniz, mas por aquilo
que constitui o seu âmago. E o âmago que move a modernidade é o espírito
crítico em relação ao presente e ao passado. Assim, em Freyre, a Tradição lê a
Região e, por sua vez, esta lê a Tradição, e ambas leem o que é proveitoso para
o Brasil das experiências modernas na Europa e nos Estados Unidos. Em
contrapartida, a modernidade é a ferramenta para ver o que caducou das
experiências legadas pela Tradição e a Região. A Interpenetração e o
interculturalismo cultural é a palavra de ordem na obra e no pensamento de
Freyre.
JC -Como
o conflito - direto ou indireto - entre esses movimentos contribui para a
fertilidade e renovação da cultura pernambucana?
AC - A existência de tantos intelectuais de peso
vivendo e atuando em Pernambuco, a exemplo dos que foram citados acima, revela a
riqueza e a efervescência da vida cultural do Estado. Por outro lado, cada um
desses movimentos termina dialogando explicita ou implicitamente entre eles.
Mas o mais importante é que quando observamos um movimento como o Mangue Beat,
nos Anos 90, vemos o quanto ele tem do Regionalismo de Gilberto Freyre, do
Tropicalismo de Jomard Muniz de Brito, da experiência do Teatro Popular do
Nordeste de Hermilo Borba Filho, de um certo imaginário da cidade criado pela
poesia de João Cabral, Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo, e da radicalidade de
pensar a cidade, a região e o Brasil de um Paulo Freire e de um Josué de
Castro. No fundo, cada um desses movimentos, tentou, ao seu modo, oferecer mais
do que uma leitura do Brasil, do Nordeste e do Recife, eles buscaram, de
maneira generosa, um projeto de futuro, um projeto do que o Brasil deveria ser
dentro do concerto das nações modernas. Pena que o Brasil desse começo do
século XXI pareça menos generoso e interessante do que o Brasil sonhado por
aqueles que fizeram o século XX.
Renato ContenteJC |
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