Maria Bethânia lança 'Caderno de Poesias' - Divulgação
RIO — Em 2009, a historiadora mineira
Heloisa Starling convidou Maria Bethânia para participar de um projeto da
Universidade Federal de Minas Gerais em que a cantora escolheria seus poemas
preferidos para declamar aos alunos. Bethânia topou, encheu os bolsos com
versos de Fernando Pessoa, Castro Alves, Guimarães Rosa, entre outros, e, meses
depois, interpretou-os para uma plateia lotada de jovens. O som falhou, a luz
faltou, mas o sarau improvisado nunca saiu da memória da artista, que acabou
transformando a ideia no espetáculo “Bethânia e as palavras”, que rodou Brasil
e Portugal.
No ano em que comemora cinco décadas
de carreira — com show, exposição e enredo de carnaval entre as celebrações — a
cantora agora lança o livro com todas as poesias escolhidas, além de textos de
próprio punho: “Caderno de poesias” (Editora UFMG), com projeto gráfico de
Gringo Cardia.
Paralelamente, sai pela Biscoito Fino
o DVD do espetáculo que deu origem à publicação. E o que era para ser só um
sarau para alunos também vai virar uma série de TV: ao assistir a uma das
apresentações, a direção do Arte 1 a convidou para criar um programa sobre o
tema, e o piloto, sobre Castro Alves, acaba de ser gravado. Ao GLOBO, Bethânia
fala sobre sua relação com a poesia.
Além de poesia, é sabido que você
adora HQs. Foram os quadrinhos que te despertaram para a leitura?
Na verdade, não. Estudei em colégio
de freira, com muito rigor, onde eu tinha muito medo. Mas conheci o professor
Nestor de Oliveira. Ele me trouxe a novidade de que uma aula podia ser
deliciosa. Ele saía daquele rigor. Acho que ele era muito boêmio e não
preparava a aula, sabe? (risos) Ele pegava uma poesia linda do
Castro Alves, dava um pouco de gramática e tome poesia! Foi daí. A coisa da
história em quadrinhos me pegou já aqui no Rio, quando me vi com 17 anos caindo
nessa novidade de ser cantora famosa. Era uma coisa infantil. E eu ainda leio.
Domingo agora ganhei um livro muito interessante, “A vida oculta de Fernando
Pessoa”, em quadrinhos.
Depois do Nestor, quais mestres foram
te guiando pela poesia?
Sou irmã de Caetano, né? Mas vindo
para o Rio, Vinicius de Moraes, que foi um grande amigo, um grande professor.
Por algum tempo, morávamos no mesmo prédio, e ele perguntava: “Bethaninha, que
cê vai fazer hoje? Tome este livro. Leia e comente comigo”. E Fauzi Arap (diretor
de teatro). Este projeto, hoje, é fruto de um exercício que Fauzi e eu
descobrimos juntos, lá atrás, um jeito que cortar um poema e colar com um
pedaço de música, essas colagens que ele me ensinou para eu me expressar
melhor.
A ordem dos poemas também foi
estabelecida por você?
Fui eu que fiz tudo. E fiz às 11h,
numa universidade, sem luz, sem som, eu cantarolava à capela, e todo mundo foi
gostando daquilo, como se fosse um espetáculo. E pra mim não era. Mas com o
respaldo da universidade e com a permissão dos autores, virou. E isso pra mim é
bonito porque vai oferecer para outros alunos aquela mesma emoção que eu senti
com o Nestor. Se não fosse com esse propósito, eu deixava tudo guardado,
quietinho, como sempre fiz, e depois queimava (refere-se aos textos de
sua autoria que integram o livro).
Mas na exposição que ocupou este ano
o Paço Imperial havia alguns dos seus cadernos de poesias à mostra...
Eu dei uma aberturinha maior esse
ano, né? (risos) Eu não tenho intenção nenhuma de publicar,
nada. Eu gosto é do exercício. Faço para me aliviar. Toda essa pressão de
palco, estreia, visibilidade... É uma válvula de escape.
No livro, você escreve que “Dizer
poesia hoje, nesse tempo de tanto desapego, é tarefa difícil. É como ofender o
mundo”.
Exato. Pare um pouquinho, desligue o
telefone dez minutos, leia um verso. Em algum momento você vai se lembrar de
como aquilo te fez sentir. Alguma coisa fica. Neide Archanjo dizia: “Poesia é
uma pétala caindo no abismo”.
Mas a poesia também vive um momento
bom, com boas vendagens para coletâneas, como a de Leminski.
Acho que é porque pessoa também não
aguenta! Ninguém aguenta ficar três horas no trânsito sem cantarolar uma
canção, sem lembrar de uma frase, de um beijo, de um perfume.
A lista dos poemas do livro tem
Fausto Fawcett, Bruna Lombardi.
‘No desespero eu corro pro Pessoa, a poesia me vinga. Pelo
menos alguém escreveu o que eu não sei dizer’
Foi a Regina Casé quem me apresentou
à poesia de Fausto Fawcett, e adoro. A Bruna eu conheço de muitos e muitos
anos. E quis incluir aquele poema lindo que ela fez quando arrebentou com o
mundo como Diadorim (na minissérie “Grande Sertão: Veredas”, em 1985),
um poema sobre o ar: “Você pode me empurrar pro precipício/ não me importo com
isso/ eu adoro voar”.
Como surgiu o programa de TV?
A direção do Arte 1 me procurou, com
interesse em investir em poesia, querendo que eu fizesse um programa. Eu disse
que sim, mas que primeiro precisava saber se tinha dinheiro público dentro. Se
tivesse, eu estaria fora. Depois, disse que não sou jornalista, não sei
entrevistar, não sou intelectual, não sirvo para mediar. O que posso fazer é
interpretar. Sugeri começarmos com Castro Alves, e botar o professor Alberto da
Costa e Silva para dialogar com o Mautner. Eles conversavam, e de vez em quando
citam algum poema. E eu pá! Entro e declamo. E eu também pedi para ter sempre
um professor de escola pública em cada episódio, para conversar sobre a sua
realidade.
Sim. Recebi o livro do
Chico César, “Versos pornográficos”, quando fizemos um show juntos. E desde
então estou louca por este livro. E é uma delícia, ele é danado, eu lia e
pensava: menino, tome juízo! A poesia tem uma sensualidade infernal. Tem uma
hora que nego fica mexendo ali e não segura a onda, entrega o jogo.
Como você viu a notícia
do incêndio no Museu de Língua Portuguesa?
Eu estava vendo TV e vi a
tragédia. Inclusive eu “falo” neste museu, eu recito justamente Diadorim, de
Guimarães Rosa. É um simbolismo muito forte, o fogo lambendo a nossa língua.
Logo nesse lugar, esse elemento... Você veja: água, lama, lume. É a natureza
estremecendo. Isso me dá mais certeza de que a natureza é realmente poderosa e
está dando sinais de muita nitidez. Normalmente, quando tem lume, é um bom
sinal. É um elemento que está perto de mim, por causa do meu orixá. É sabido
que o lume, quando incendeia, renova. Por isso eu queimo meus papéis, meus
escritos, e quando falam “que pena”, eu penso: pena nada, eu é que não sou
boba.
E o fogo renova sua
escrita?
O fogo pode ser um sinal
de esperança, sim. O que eu fico assustada, mais do que tudo, é com o cinismo.
O cara acaba com as cidades, com lama, cobre tudo, mata, e não acontece nada.
Agora o incêndio, ah, “pode ter sido um curto-circuito porque não tinha
prevenção”, como assim? O Rio de Janeiro botando tapume nos hospitais. É muito
cinismo, é desesperador. No desespero eu corro pro Pessoa, a poesia me vinga.
Pelo menos alguém escreveu o que eu não sei dizer.
POR O GLOBO
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