Os 35 anos do disco Kaya reforçam a imagem de Bob Marley como símbolo máximo do reggae e ícone mundial
No
movimento rastafári, o ser supremo responde por Hailê Selassiê I, imperador da
Etiópia. Para muitos, no entanto, o cargo deveria ser exercido por Bob Marley.
Se estivesse vivo, Robert Nesta Marley seria um senhor de 68 anos. Porém,
morreu cedo, aos 36, vítima de um câncer, em 1981. Três anos antes, lançou o
disco Kaya e entrou, definitivamente, para a história da música mundial. Ainda
hoje, 35 anos depois, o álbum segue cultuado e representa um marco na carreira
do artista.
Uma edição especial (disponível em CD, vinil e
download digital) chegou recentemente às lojas para celebrar a data. Além das
faixas originais remasterizadas, a gravadora Tuff Gong (criada por Bob Marley)
incluiu a canção Smile Jamaica na seleção. Lançada originalmente no lado B do compacto
Satisfy my soul, a música carrega o mesmo nome do festival no qual Bob se
apresentou em 1976, poucos dias depois de levar um tiro em casa, ainda com os
ferimentos à mostra.
O lançamento traz, ainda, um segundo disco, com
o raro concerto gravado em Roterdã, na Holanda, em 7 de julho de 1978, quando o
rastaman e a companheira banda The Wailers apresentaram ao público europeu o
repertório de Kaya. “Cantar sobre o sofrimento não é algo somente profundo.
Queremos que nossa gente viva feliz”, poetizou na época.
“Foi um disco no qual ele conseguiu reunir as
ideias que acreditava, a espiritualidade nas letras, e, ao mesmo tempo, reunir
hits históricos, como Is this love”, resume Alexandre Carlo, vocalista do
Natiruts.
Depois de tornar-se conhecido pelo engajamento
político e pelo discurso militante em prol da paz civil e da ascensão da raça
negra, Kaya moderou a postura de Bob com melodias e letras mais românticas.
Muitos o acusaram de ter enfraquecido, de ter abandonado causas maiores.
Leve
“O álbum perde a pegada contestatória dos
trabalhos anteriores”, decreta Fauzi Beydoun, a voz da Tribo de Jah. Segundo
ele, os motivos para o “registro mais light” seriam, essencialmente, dois: “A
perseguição política em cima dele estava intensa. Ele tinha sofrido um atentado,
levou um tiro. Fora isso, a gravadora estava tentando abrir a cabeça de Bob.
Queriam menos africanidade, já que o público de Bob Marley era, na maioria,
branco”, argumentou.
Ele tem razão. Embora tenha sido, desde o início
da carreira, figura mítica na Jamaica, onde nasceu, o sucesso comercial (e
mundial) se deu a partir dos anos 1970, quando suas canções desembarcaram no
mercado caucasiano dos Estados Unidos e da Europa, algumas entoadas por outros
intérpretes (que impulsionaram a carreira do regueiro), como o americano Johnny
Nash, que gravou Stir it up (antes de Bob, inclusive) em 1972, e o registro
clássico de I shot the sheriff, de Eric Clapton, em 1974.
O DJ e produtor local, Hugo Drop, conhecido pela
marca Regueiros do Cerrado e pelas festas ligadas ao gênero, lista uma terceira
influência: “Nessa época, Bob teve um caso com Cindy Breakspeare (Miss Mundo
1976), com quem teve o filho Damian Marley. O fato, talvez, também tenha
influenciado suas letras”, comentou. Damian é o caçula entre os onze filhos
reconhecidos do cantor.
Apesar das críticas, a escolha parece ser
acertada, pelo menos no quesito visibilidade. Kaya rendeu alguns dos maiores
clássicos de Bob Marley, como Is this love, Sun is shining e a própria faixa
título. “Surpreendeu todos pela genialidade”, arriscou Hugo. Passados 35 anos,
o disco não gera maiores discussões, em virtude do teor apolítico, e descansa
como uma das principais empreitadas de Bob Marley.

Kaya
35th anniversary deluxe edition. De Bob Marley & The Wailers. Disco duplo. Tuff Gong / Island /
Universal. Preço médio: R$50.
Em casa
No dia 3 de dezembro de 1976, três dias antes do
concerto Smile Jamaica, organizado pelo primeiro-ministro jamaicano Michael
Manley, Bob Marley foi alvejado em casa. O tiro acertou o peito de raspão e o
braço esquerdo, sem causar danos profundos. A esposa e o empresário, que
estavam no recinto, também foram atingidos e sofreram ferimentos mais sérios,
mas se recuperaram. O atentado foi noticiado como resultado de perseguição
política.
Bob brasileiro
Em 2002, o baiano Gilberto Gil causou
boa surpresa no mercado nacional ao aparecer com um álbum inteiramente devotado
a Bob Marley, cujo título (Kaya N'Gan Daya) faz referência direta ao trabalho
do jamaicano. Entre as faixas, clássicos do repertório de Bob, como Three
little birds, Buffalo soldier, além do hino No woman, no cry. A versão escrita
por Gil (Não chore mais), também gravada anteriormente, tornou-se um dos
maiores sucessos da carreira do tropicalista.
Bob americano
“Eu me sinto como se fosse a
reencarnação de Bob Marley". A pretensiosa afirmação foi feita pelo rapper
americano Snoop Dogg em entrevista à revista Rolling Stone. O compositor agora
prefere ser chamado por Snoop Lion, nome que ele diz ter recebido de um padre
rastafári, quando em visita à Jamaica. Segundo ele, ninguém assumiu o papel de
Bob depois da morte do cantor, em 1981. Ele acredita que sua missão seja
“continuar propagando a mensagem de paz de Bob”.
Erva censurada
O nome do disco não é por acaso. Kaya é uma recorrente
gíria referente à maconha, principalmente pelos adeptos da erva. Sempre ligado
ao uso da planta, Bob Marley defendeu publicamente sua utilização para fins
filosóficos e transcendentais.
O fumo estava relacionado com o movimento
rastafári e, segundo ele, seria uma das formas de aproximar-se da filosofia
proposta. Um canal de comunicação com Jah (forma poética de se referir a Jeová,
o Deus Altíssimo).
A crença o motivou a estampar, na contracapa do
álbum, uma foto de um cigarro artesanal misturado a folhas da cannabis sativa
(a angiosperma que gera a erva fumada). Lançado em 1978, em plena ditadura
militar brasileira, a imagem foi censurada por aqui e substituída. No lugar,
apenas uma tela em branco.
Alexandre Carlo, do Natiruts, acredita que a
geração atual ainda cultua Bob Marley. Segundo ele, os jovens são bem
informados quanto à carreira e aos sucessos do rei do reggae. Mas, no que tange
às práticas religiosas de Bob, a mensagem parece ter sido corrompida: “A
banalização e a distorção do seu discurso relativo ao uso da kaya continua no
Brasil. Nos países desenvolvidos, ele não é visto como um doidão maconheiro.
Lá, existe cultura suficiente para assimilar a pureza da obra dos grandes e
verdadeiros transformadores da humanidade.”
Diário de Pernambuco
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