
Ferreira Gullar tem experimentado uma exposição inédita, de sua figura e de sua obra, desde que chegou aos 80 anos. É como se, desde então, houvesse um esforço, de diversas frentes, no sentido de formalizar o que ninguém punha em dúvida: o maranhense é um dos principais artistas da poesia brasileira e um intelectual consistente, de um tipo cada vez mais raro, dotado de uma erudição que alcança muitos domínios da cultura.
Aos 84 anos, Gullar tem multiplicado feitos: em 2010, venceu a principal comenda literária da língua portuguesa, o Prêmio Camões instituído pelos governos do Brasil e de Portugal; no ano seguinte, foi a vez do Prêmio Jabuti, na categoria Poesia, por seu livro de poemas mais recente, "Em alguma parte alguma" (um inusitado best-seller, pelo menos tanto quanto o possa ser um livro de poemas no País); e, no começo do mês, foi empossado na Academia Brasileira de Letras (ABL) - eleição que venceu ao conquistar 36 dos 37 votos em disputa.
Tudo isso convida a um balanço da produção literária e intelectual de Gullar, que ocupa territórios como o da crônica, do ensaio, da crítica de arte, do teatro e, claro, da poesia. O poeta, contudo, segue olhando em frente e avançando, ao invés de viver do passado. Quando evoca a história e a memória de seu tempo até aqui, ele prefere reviver o passado, em projetos que passam longe da autocele-bração. É o caso de seu livro mais recente, "O prazer do poema - Uma antologia pessoal".
Publicado pela Edições de Janeiro, o livro compila dezenas de poemas que Gullar tem entre os seus favoritos, de autores de diversos tempos, espaços e ideais estéticos. "(Entraram no livro) os poemas que, por alguma razão misteriosa, permaneceram em minha memória e que, relidos hoje, voltam a provocar (ou não) aquele curto-circuito que me parece ser a causa do deslumbramento", explica na introdução do volume.
O leitor e a leitura
A seleção de Gullar é o registro da dedicação de um leitor e da qualidade de sua leitura. Grandes mestres do ofício poético no Brasil são ladeados por poetas de outras tradições, desde a Antiguidade Clássica até os vanguardistas que agitaram a Europa nas primeiras décadas do começo do passado.
João Cabral de Melo Neto aparece próximo de Gregório de Matos, de Baudelaire, de Rilke e de Neruda; Drummond, Artaud, Rimbaud, Pessoa, Whitman figuram em outro rincão deste território literário construído pelo poeta brasileiro. Horácio, Camões, Machado, Bandeira, Borges, Quintana: a lista é extensa e ameaça causar vertigem no leitor, que pode demorar a se dar conta da ausência de gigantes como Goethe, Blake e Byron.
"Este livro nasceu de uma descoberta, a descoberta de uma coisa que eu já sabia: que o poema pode deslumbrar pessoas. Não serão todos os poemas, certamente, nem todos os bons poemas", explica o antologista na apresentação. A ideia não era fazer um livro didático ou panorâmico. "É um livro que tenta passar pro leitor, a minha experiência com o leitor", explicou o poeta, em entrevista por telefone, ao Caderno 3.
"O critério foi esse: trata-se do que vivi. Ao reler esses poemas, vi que eles continuavam a ter a mesma expressão, a mesma capacidade de me comover e encantar. Daí, resolvi passar ao leitor a beleza que eu mesmo encontrava em cada um deles", conta. É uma outra maneira de partilhar com o leitor das próprias experiências. Gullar já o faz por vias mais tradicionais, por assim dizer, na coluna que escreve semanalmente e que, no Ceará, é publicada aos domingos no Diário do Nordeste.
Formação
"O prazer do poema" é uma espécie de livro de formação, que não respeita uma cronologia, mas define temas favoritos - que, frequentemente, coincidem com aqueles que figuram na própria obra de Gullar. É o caso dos poemas sobre o amor (a exemplo de Camões, Dante, Oswald de Andrade e Cecília Meireles), morte (Mario de Andrade, Mallarmé, T. S. Eliot, entre outros), a ode de Neruda aos gatos, e os metapoemas (Cabral, Pessoa, Martí, etc).
Alguns, em língua estrangeira, precisaram ser traduzidos pelo poeta. "Houve uns que traduzi eu mesmo, porque li ou porque me pediram para traduzir. Se os publiquei antes, é porque achei que estava bem, que passavam esse deslumbramento. Uns traduzi e retraduzi, até ficarem como estão neste livro", relembra.
A necessidade da arte
Dos 80 autores com poemas incluídos na antologia, apenas um está vivo - o peruano Carlos Gérman Belli, 87. A ausência de gente na ativa e de contemporâneos mais jovens se justifica no caráter autobiográfico da organização do livro escolhida por Ferreira Gullar.
Não se trata de um desagrado com a poesia que se escreve hoje, como acontece com a arte contemporânea, alvo permanente do poeta, em sua função de crítico. "Só a arte entrou nessa fria de se autodestruir. Se o romance tivesse entrado, não haveria 'Grande sertão: veredas', do Guimarães Rosa, nem 'Cem anos de solidão', de García Márquez. O cara que manda um urubu para uma exposição está dizendo que a arte não existe. Pode não existir pra ele, mas o artista de verdade, até por necessidade, faz arte. E assim são os poetas de verdade", defende Gullar.
"A ABL mudou. Hoje, é uma entidade ativa"
No último dia 5, Ferreira Gullar tomou posse na ABL. O poeta é uma figura atípica em nossa literatura, pois mesmo os desafetos teriam dificuldade em questionar-lhe os méritos literários. Contudo, não faltaram críticas à sua indicação, como se fosse ele a não precisar da Academia.
"Entrei na ABL porque quis", responde direto o poeta, após três décadas rejeitando sugestões para que se candidatasse. "Ela mudou. Não é mais aquela Academia que era apenas uma instituição consagratória. É uma entidade cultural ativa. Não entrei pensando em ser consagrado. Tenho muitos amigos lá e comecei a conhecê-la melhor. É um lugar agradável, todas elas pessoas cultas, que se dedicaram a cultura. Estou contente de ter entrado. Mas tem gente que consegue ter preconceito contra a ABL", explica Ferreira Gullar.
O poeta, contudo, reconhece que a resistência de uma parcela da comunidade literária e intelectual não é totalmente arbitrária. "Acho que a ABL praticou algumas coisas que não devia ter feito, como botar lá dentro pessoas que não são escritoras e, quando são, escrevem algo que não tem qualidade. Mas é difícil controlar gente. São 40 pessoas, que têm empatias, amizades. A dificuldade de dizer não é grande. Mas, em sua maioria, a ABL não é isso. Teve e tem grandes nomes em seus quadros. Acho que essa visão preconceituosa está mudando", avalia o imortal.
O poeta não cita nomes, mas não é de hoje que a Academia inclui notáveis, cujos feitos não são associados às letras. A cadeira de Gullar, de número 37, é uma mostra disso. Antes dele, passaram os também poetas Ivan Junqueira e João Cabral de Melo Neto, mas também o empresário Assis Chateaubriand (fundador dos Diários Associados) e Getúlio Vargas, então ditador do Brasil. (DR)
Livro
O prazer do poema - Uma antologia pessoal
Ferreira Gullar
Edições de Janeiro
2014, 368 páginas
R$ 58
Dellano Rios
Editor de área
Diário do Nordeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário