Vida e obra do poeta paraibano são revisitadas em sintonia com as cinco fases do luto identificadas pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross - negação, raiva, negociação, depressão e aceitação
Arte sobre fotos de Paulo Paiva/DP/DAPress
A cada seis meses, o estudante paraibano de 20 e poucos anos vinha ao Recife para fazer provas. Cursava direito à distância. Ao caminhar pelas ruas da cidade, observava a própria sombra e a comparava com a pele de um rinoceronte. Franzino e introvertido, guardava na imaginação o maior trunfo. Dali a pouco, já no Rio de Janeiro, lançaria de maneira independente o primeiro e único livro de poesias, Eu, suficiente para inscrever o próprio nome entre os principais autores da literatura brasileira. Aos 30 anos de idade, Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) se encontrou com a sua obsessão, com o grande tema de sua obra. A morte abraçou o poeta há um século, completado na quarta-feira, 12 de novembro.
Para lembrar a data, o Viver faz uma leitura da vida e obra do escritor paraibano como ele próprio passou os 30 anos de existência, em uma convivência íntima com o óbito. Ao passar pelas cinco fases do luto identificadas pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross – negação, raiva, negociação, depressão e aceitação – são revelados nuances da morte cotidiana e, ao mesmo tempo, características da poética augustiniana.
NEGAÇÃO
“E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação...
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.”
(Trecho da poesia Queixas noturnas)
Nelson Gomes Larangeira, 62, vendedor de flores
Há 31 anos Nelson trabalha em uma floricultura ao lado de um cemitério, mas não tem nenhuma paixão especial por flores. Encara o serviço como qualquer outro. Na ponta da língua, o provérbio: ‘Até nas flores se encontra a diferença da sorte: umas enfeitam a vida, outras enfeitam a morte’. A tristeza dos clientes não interfere no humor do vendedor. Quando alguém chora, ele prefere não falar nada. Casado, com dois filhos e dois netos, ele acha que, por ser um assunto triste demais, a morte não deveria ser abordada pela poesia. “Faz 15 anos que minha mãe morreu e ainda não passou a falta. Na época, fiquei um mês de luto, muito para baixo. Morte de mãe a gente nunca esquece”.
O único livro publicado por Augusto dos Anjos, Eu (1912), traz alguns elementos do simbolismo e parnasianismo, mas somente no que diz respeito à forma. Ele é identificado como pré-modernista, por ter antecipado traços expressionistas. Para o professor de literatura Djair Teófilo do Rego, pesquisador da obra do poeta paraibano, o negativismo e pessimismo de Augusto dos Anjos foge da literatura interessada em agradar o leitor. “Ele explora temáticas como a morte por um viés científico, biológico, químico. Não aposta em frases de efeito, mas em versos cerebrais. Vai para a física, para a filosofia. Escancara nossa dificuldade de verbalizar ideias, seja na fala ou na escrita”.
RAIVA
“Toma um fósforo Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
(trecho da poesia Versos íntimos)
Ana Maria da Silva, 40 anos, zeladora de jazigos vitalícios
Apesar do sorriso fácil, Ana Maria sofre junto com a maioria das famílias dos mortos que chegam ao cemitério. Cai no choro mais de uma vez por semana. Para ela, essa empatia falta nos funcionários do local – quase todos homens. São frios e impassíveis. Ana desconfia que a mesma coisa aconteça com pessoas mais ricas. “Quando morre alguém com dinheiro, quase ninguém chora. Pobre tem mais sentimento, faz zoada, se descabela, passa mal de tanto sofrimento. Rico vive em silêncio. Acho que a questão material faz essa diferença. Mas já vi abrirem cova de rico. Depois de um tempo, a pessoa vira um amontoado de osso, igual ao pobre. Até os dentes ficam separados”.
>>>> Deboche e subversão
O efeito surpresa é arma poderosa da poética de Augusto dos Anjos. Munido de ousadia e habilidade no trato da linguagem, ele investe na agressividade, no confronto com o interlocutor. Sobre os versos do poeta, pairam um véu macabro, gótico, mórbido, onde o texto encontra terreno fértil para extrapolar supostos limites da poesia. “O inusitado da metáfora poética dele é algo fora da retorica romântica, da retorica clássica, do parnasianismo, do simbolismo. Tem a ver com a poesia científica, mas ele vai além. Augusto dos Anjos faz uma metáfora hipérbole, extremamente forçada, que faz o papel do grotesco, desafia o pensamento. É um texto extremamente moderno”, classifica a professora Bianca Campello, doutoranda em literatura pela UFPE.
NEGOCIAÇÃO
“Esta árvore, meu pai, possui minh’alma...
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
‘Não mate a árvore, pai, para que eu viva!’
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!”
(trecho da poesia A árvore da serra)
Carlos Henrique de Freitas Marinho, 26 anos, agente funerário
Evangélico, Carlos Henrique acredita em vida após a morte. “Dependendo de como a gente se comporta por aqui, tem algo bem melhor à nossa espera. Um mundo sem sofrimento, sem violência, sem constrangimento, sem choro. Então o fim da vida pode ser motivo tanto de tristeza, quanto de alegria. É a passagem de uma vida para outra”. O agente funerário está há apenas três meses no trabalho, onde faz de tudo um pouco, desde transportar caixões até maquiar corpos. Para ele, pensar na morte é um meio de refletir sobre a vida. “A bíblia diz que o sábio Salomão preferia ir para um velório do que para uma festa, porque assim poderia meditar sobre suas atitudes”.
>>>> Falem mal, mas falem de mim
É consenso entre pesquisadores o desprezo por parte da academia pela obra de Augusto dos Anjos. Mencionado apenas de maneira superficial nos cursos de letras, o poeta quase não encontra espaço na formação de professores de literatura e, por conseguinte, nas salas de aula. Embora o único livro publicado pelo escritor tenha ganhado cerca de 40 edições desde a primeira, em 1912, a obra do paraibano é considerada pouco lida. “Quando o movimento emo estava na moda, a recepção dele estava em alta. Adolescentes são radicais em gostar ou odiar. A maioria dos alunos chama ele de doido, de mórbido. Afinal, falar da morte é encarar a falibilidade dele mesmo, algo rejeitado pelo jovem. Outros, porém, têm curiosidade por tudo que é tido como proibido, inclusive a morte, um assunto tabu da sociedade ocidental”, diz Bianca Campello.
DEPRESSÃO
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
(trecho da poesia Tristezas de um quarto minguante)
Sílvio “Peruca” da Silva, 55 anos, fiscal de cemitério
Há um ano, Sílvio perdeu a irmã para uma doença no pulmão. Há 5 meses, morreu o tio Lourenço. Há dois meses, morreu o filho, após dez dias do nascimento. Há um mês, foi a vez da mãe. “A dor é muito forte. Como trabalho no cemitério, convivo com o sofrimento. Essa semana fui no túmulo dela e estava ‘sangrando’. Isso é normal. O corpo ‘estoura’ quando entra em decomposição. Ainda está um fedor grande. Botei gesso para amenizar e pedi a bênção a ela”. Apesar da sequência de eventos tristes, Sílvio encara a morte com naturalidade. “Se não fosse ela, eu não tinha o meu ganha-pão. Até acho bonito... ela é pra todo mundo! Rico, pobre, branco, preto e amarelo”.
>>>> Negativo e pessimista
Toda a obra de Augusto dos Anjos converge para ideias pessimistas. Essa visão de mundo está associada à época vivida pelo poeta – fim do século 19 e começo do século 20 – mas também irá ser bem recebida em períodos subsequentes. Algumas das temáticas abordadas pelo escritor (a exemplo da decadência da região Nordeste) perduram no tempo. O negativismo aproxima o escritor paraibano – ao menos ideologicamente – a nomes como Arthur Schopenhauer. “O filósofo dizia que a vontade racional, por mais que não queira, vive inquietudes. Era exatamente como vivia Augusto dos Anjos, inquietado pelo conhecimento. O desafio dele era continuar vivendo, enfrentar um tempo adverso”, aponta Djair Teófilo.
ACEITAÇÃO
“Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!”
(trecho da poesia Último credo)
Genildo José dos Santos, 62 anos, coveiro
O emprego é uma alegria na vida de Genildo. Na função há 16 anos, ele adora ser coveiro, acha divertido. Prefere enterros alegres, com orquestra ou pagode. Quando ele próprio morrer, avisa, não quer choro nem vela. “Se a vida inteira foi de festa e sorriso, pra que chorar na morte? No meu velório quero todo mundo feliz. Morre o palhaço, mas o circo continua”. Um dos passatempos do coveiro é observar “choros falsos e desmaios fingidos”, coisa muito comum, diz ele. “Só tenho cuidado para não rir fora de hora, não faltar com o respeito”. Na hora do serviço, ele diz não se deixar afetar por sentimentos negativos. “Fico balançado com mãe chorando a morte de um anjo (criança)”.
>>> Atual como nunca
A linguagem inovadora e provocativa de Augusto dos Anjos, associada aos temas espinhosos, atrai o interesse dos públicos os mais diversos. Para o professor de literatura Robson Teles, doutor em letras pela UFPB, a obra do poeta abre um amplo leque de oportunidades para que seja estudada de maneira interdisciplinar. “Em tempos de Enem, que propõe a aproximação de vários universos para a formação de uma leitura de mundo, seria ideal estudar as poesias dele no âmbito da química, da física, da biologia”. O uso do negativismo cientifista e do pessimismo para fazer a leitura do Brasil explica a atualidade da poesia dele. “Até hoje vivemos um mal estar e um ceticismo a respeito da política, da economia, da cultura”, acrescenta Djair Teófilo.
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