Com registro do show que estreou em 2013 e
amadureceu na estrada, cantor recebe homenagem no Grammy Latino
RIO - Uma figura disforme, feita
de luz e pele. Assim Ney Matogrosso — que recebe em Las Vegas, nesta quarta, o
Prêmio Especial do Grammy Latino pelo conjunto da obra — aparece na capa do CD
e DVD “Atento aos sinais ao vivo” (Som Livre), em foto de Marcos Hermes.
Capturado pela lente, o personagem que carrega brilho e bestialidade funciona
como metáfora para o espetáculo — carregado de potência sonora, imagens
poéticas fortes, cores quentes e malícia, mas também de certa doçura sem
ingenuidade. Além disso, a ideia de movimento da capa espelha o processo que
desencadeou o DVD — um show que estreou em fevereiro de 2013, foi gravado em
estúdio e lançado em CD, seguiu viajando o Brasil e foi filmado em junho deste
ano no HSBC Tom Brasil, em São Paulo.
— É um processo de
amadurecimento, um trabalho que você vai repetindo e entendendo cada vez mais —
avalia Ney. — Há sempre espaço para um acréscimo. São coisas mínimas, olhares,
movimentos, danças que são incorporadas. O show não é coreografado, tenho
liberdade de mudar, as coisas vão se transformando. “Tupi fusão” mudou muito,
aqueles movimentos que resultaram na capa, nada daquilo tinha. Acho muito
interessante não ter minha cara ali. É uma fotografia do movimento. Passou a
ser uma figura luminosa, estranha, deixou de ser uma pessoa. Quando o fotógrafo
falou “fiz uma brincadeira”, quis ver. E adorei. É isso que me interessa.
Dirigido por Felipe Nepomuceno, o
DVD registra o espetáculo que pareceu antecipar o calor das ruas que tomaria o
país a partir dos protestos de junho de 2013 e desembocaria na polarização
acirrada e agressiva que marcaria a recente disputa eleitoral. O início do show
é impressionante, com a violência de “Rua da Passagem” (Lenine e Arnaldo
Antunes) e “Incêndio” (Pedro Luís), que tem imagens de protestos, confrontos de
manifestantes e policiais, tanques e coquetéis molotov voando.
— Sim, eu estava de alguma forma
sintonizado com a realidade. Naquele começo todo eu pedi: “procurem imagens
assim”; já tinha acontecido a Primavera Árabe. Quando começaram os protestos no
Brasil, pedi pra acrescentarem imagens daqui — conta o artista. — Talvez tenha
sido o primeiro trabalho meu no qual tive a intenção de colocar isso.
Infelizmente estava certo. Essa polarização que se viu nas eleições é ridícula.
Governos passarão, presidentes passarão, partidos passarão. Tem que parar com
essa palhaçada de divisão do povo entre partidos. Se continuar do jeito que
está, vamos virar uma venezuelazinha de quinta. E esses pedidos da volta da
intervenção militar? Isso é horrível, um retrocesso.
“Atento
aos sinais” também traz um Ney ligado na nova geração da música brasileira —
como ele já se mostrou em outros trabalhos ao longo de sua carreira. Desta vez,
ele traz para perto de si compositores como Rafael Rocha (“Samba do
Blackberry”, em parceria com Alberto Continentino, e “Não consigo”), Dani Black
(“Oração”) e Criolo (“Freguês da meia-noite”). Alguns deles aparecem no
interessante extra do DVD, comentando suas composições.
Mais que um documento do que acontece no palco, o DVD tenta
capturar o clima do show, como nota Ney:
Sem ansiedade
sobre novo CD
No DVD, o cantor (que também concorre
ao Grammy Latino na categoria Melhor Álbum Pop Contemporâneo brasileiro por
“Infernynho — Marília Bessy convida Ney Matogrosso”) reafirma uma assinatura
artística que não toma a ideia de coerência estética como prisão. Sua
trajetória nos últimos anos, alternando projetos mais contidos (como “Beijo
bandido” e “Ney Matogrosso interpreta Cartola”) com outros mais explosivos
(como “Vagabundo” e o próprio “Atento aos sinais”), mostra isso de forma clara.
Os próximos passos ainda são uma incógnita:
— Pela primeira vez
não tenho noção do que farei ainda. Nem estou ansioso. Antes, sempre na metade
de um projeto, começava a fazer o outro. Até tenho músicas separadas, estou
ouvindo coisas, mas sem nenhuma pressa de realizar. Quero dar uma tempo para mim
mesmo. Há mais de vinte anos emendo um trabalho no outro. É muito desgastante.
Aos 73 anos, Ney vê sua tranquilidade
como reflexo da maturidade:
— Tinha uma certa ansiedade com
relação ao tempo porque achava que não poderia cantar por muitos anos além. Hoje
estou tranquilo. Estou em forma vocalmente, já tirei esse grilo. Claro que aos
80 eu talvez não possa, mas não estou mais preocupado com isso. Tenho muita
coisa posta aí e posso me dar ao luxo de não me preocupar. Como se tivesse dado
uma adiantada grande, agora posso relaxar.
POR LEONARDO LICHOTE
O GLOBO
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