Novo livro, lançado na Fliporto, traz o folheto que o autor de 'O auto da Compadecida' fez inspirado pela narrativa de Carrero, então um escritor inciante

narrativa de um jovem aprendiz que inspira a criação de um escritor já consagrado. A história por trás do conto e do folheto que compõem o livro O romance do bordado e da pantera negra(Iluminuras, 64 páginas), de Raimundo Carrero e Ariano Suassuna, é tão surpreendente como o enredo dos dois textos. Perdidos há muitos anos e só pelos que leram a plaquete Manifesto do Movimento Armorial de 1974, esses escritos foram reunidos agora para uma nova edição, que será lançada na Fliporto, na próxima semana.
Carrero tinha 23 anos em 1970, quando começou a escrever o conto num sábado. Depois do almoço, às 12h, sentou em frente a sua velha Remington e só parou às 17h, com a primeira versão do conto concluída. No dia seguinte, revisou e reescreveu o texto. Na segunda-feira, levou o material para o colega e mestre literário Ariano Suassuna, sempre o primeiro leitor dos seus escritos. “Ele disse na hora que gostou e aplaudiu o conto. No dia seguinte, tive uma surpresa. Ele me recebeu dizendo: ‘O conto é tão bom que o transformei em um folheto’”, relembra Carrero.
A narrativa o era uma das primeiras investidas sérias do autor de A minha alma é irmã de Deus na literatura. Como o salgueirense afirma no prefácio da edição, o texto foi feito com “o propósito claro e objetivo de participar do Movimento Armorial”. Ariano encontrou naquela história, criada com elementos do imaginário popular unidos ao tom sombrio e misterioso da prosa de Carrero, mais uma amostra do potencial de pesquisar as matrizes populares para compor uma nova arte erudita genuinamente brasileira.
E Ariano mesmo se empolgou em criar uma nova versão dessa história. No caminho inverso, fez um folheto de modelo popular com a história de Conceição, esposa do vaqueiro Elesbão, que, deixada sozinha em casa, é cercada por Simão Bugre, um homem-fera com cheiro de enxofre. Na iminência de ser atacada, os recursos que ela tem para se defender são sua fé e um bordado de um dragão que fez enquanto o marido estava longe. “Perdido entre as trevas e os ventos está o mundo”, aponta Carrero no começo da história, desenvolvida em imagens e cenas fortes.
O conto e o folheto foram incluídos no Manifesto do Movimento Armorial. Depois disso, uma cheia levou o manuscrito original do texto e Carrero nunca mais teve acesso à obra. Considerava ela perdida, apesar de estar citada no prefácio de Ariano para o seu romance mais vinculado à estética armorial,Bernarda Soledade, a tigre do Sertão (1975). “Para mostrar essas características armoriais de Carrero, escrevi, baseado nele e propositadamente reaproximando o conto do espírito da Literatura de Cordel, um folheto”, apontou Ariano na ocasião.
Segundo o pesquisador da obra de Ariano, Carlos Newton Jr., esse folheto é um dos momentos em que Ariano repete um gesto tradicional dos poetas populares, que é reescrever em versos uma história contada por outras pessoas. “Seu poema foi publicado em uma plaquete rara. Até Ariano perdeu a sua edição depois de emprestá-la para alguém”, conta o autor do Almanaque armorial.
O romance do bordado e da pantera negra só pôde relançado agora porque o agente literário de Carrero, Stephane Chao, encontrou pelos “milagres da internet” os dois textos. “Foi impressionante terem achado esse texto, foi uma emoção reler”, conta o autor. Para a edição, a Iluminuras convidou o artista Marcelo Soares, que compôs as belas xilogravuras que acompanham os textos.
A história por trás da criação de O romance do bordado e da pantera negrarevela uma característica fundamental de Ariano segundo Carrero: a generosidade. “Eu era até inconveniente, ficava lá das 9h às 21h horas conversando, lendo, debatendo”, recorda o autor. Dentro do movimento armorial, outro interlocutor era o escritor Maximiano Campos, mas muitos jovens autores, bailarinos, artistas plásticos e músicos experimentaram essa mesma abertura para conversa.
Mesmo depois do Acidente Vascular Cerebral (AVC), sofrido em 2010, Carrero não perdeu o contato com seu amigo e mestre. “Era impressionante: quando eu estava mais doente, ele, já um senhor, vinha até a minha casa com Samarone Lima e sentava-se em qualquer cadeira para ficarmos conversando”, recorda emocionado Carrero.
HOMENAGEM
Na programação da Fliporto, no próximo domingo (16/11), ele lança o volume como parte da sua homenagem ao seu mestre antes da sua palestra, às 20h30. Responsável pelo encerramento do evento, Carrero vai falar sobre a estética armorial, presente até hoje na sua obra. “Considero Tangolomango (seu mais recente romance) um livro rigorosamente armorial. Eu parto de uma festa popular, o Carnaval, para escrever a história”, conta o autor.
Na conferência de encerramento, ele vai explicar qual o reino literário que Ariano buscava compor com seu projeto estético. A confusão entre regionalismo e a concepção de arte armorial, por exemplo, é para ele um dos maiores frutos da incompreensão da crítica até hoje. “O armorial trabalha com as tradições e com o Sertão, por exemplo, de um ponto de vista metafórico. O regionalismo tinha uma visão sociológica, geográfica, restrita ao Nordeste”, diferencia. Depois das suas palavras, o músico Antônio José Madureira vai fazer um concerto também celebrando o pensamento do autor de O romance d’A Pedra do Reino.
Carrero também é lembrado na programação do evento – sua obra vai ser discutida em uma mesa com Eliene Medeiros da Costa, Priscila Varjal, Rafael Monteiro e Marcelo Pereira, todos autores de trabalhos sobre o escritor salgueirense, no sábado. Em pleno vapor, planejava lançar o seu mais novo livro, O senhor agora vai mudar de corpo, que sai pela Record, durante a Fliporto, mas precisou adiar a data. A ficção, um acerto de contas emocionante e preciso com seu passado através do seu corpo, deve ser publicada em janeiro de 2015, com mais calma. “Nós só conhecemos o mundo externo, não sabemos como é o nosso próprio corpo”, define. Sempre em corpo e alma, Carrero segue entregue a sua missão, o ofício da escrita.
JConline
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