Pesquisador fala sobre o lado político do líder religioso e a polêmica em torno de seu suposto milagre
RIO — Oitenta anos depois da morte do padre Cícero Romão
Batista (1844-1934), milhões de pessoas continuam a celebrá-lo em romarias à
cidade cearense de Juazeiro do Norte, onde ele foi eleito prefeito e deputado
federal, envolveu-se em alianças e disputas com coronéis locais e teve a
excomunhão decretada pela Igreja por alegar ser autor de um milagre. O fascínio
duradouro em torno da figura de Cìcero é acompanhado de perto há cinco décadas
pelo americano Ralph Della Cava, autor de um dos principais estudos sobre a
trajetória do religioso, “Milagre em Joaseiro”, lançado em 1977 e reeditado
este ano pela Companhia das Letras (em tradução de Maria Yedda Linhares).
No início
dos anos 1960, quando era estudante de Ciências Sociais na Universidade
Columbia, Della Cava se mudou para Juazeiro do Norte, com a mulher e os dois
filhos (a mais nova nasceu em Fortaleza), para pesquisar a vida de Cìcero. Teve
acesso a documentos até então inéditos do arquivo do religioso e entrevistou
dezenas de moradores. Hoje um decano dos estudos latino-americanos em Columbia,
Della Cava analisa nesta entrevista a atuação política de Cícero, que agia não
com a brutalidade de um “típico coronel do interior”, e sim com o tino
conciliador de um “político mineiro”, ironiza. Fala ainda sobre a polêmica em
torno da excomunhão de Cícero, que até hoje leva fiéis a pedirem sua
reabilitação ao Vaticano, e sobre a relação entre Juazeiro do Norte e Canudos.
Quatro
décadas depois da primeira edição de "Milagre em Joaseiro", que
controvérsias ainda existem em torno de Padre Cícero?
A
principal questão em aberto é se o Vaticano um dia vai “reabilitar”
integralmente Padre Cícero. Um movimento nesse sentido começou em 2004, com
apoio dos fiéis do Cariri e do bispo do Crato. O que está em jogo é a anulação de
uma série de decretos emitidos pelo Santo Ofício ao longo da vida do padre,
incluindo a ordem de excomunhão, nunca executada. Talvez Padre Cícero não seja
hoje tão controverso quanto em vida — quando a Igreja condenou como falso seu
alegado “milagre” da hóstia transformada em sangue de Cristo e ele foi visto,
erroneamente, como o comandante das forças do interior que derrubaram o governo
“salvacionista” de Franco Rabelo no Ceará. Seja como for, como explicar que, 80
anos depois de sua morte, cerca de 2 milhões de peregrinos continuem a visitar
a "Cidade Santa" de Joaseiro todo ano? Sociólogos podem argumentar
que a pobreza leva as pessoas a buscar alívio em santos e milagreiros.
Secularistas podem desdenhar disso como turismo religioso e fé mal aplicada.
Que tipo
de figura política foi Padre Cícero? E o que a trajetória dele diz sobre a
política brasileira?
Padre
Cícero foi uma figura política apesar de si mesmo. Foram a sociedade brasileira
da época e a imprensa sensacionalista que o projetaram como um proeminente e
poderoso ator político, coisa que ele definitivamente não era. Seus "atos
políticos" — como a defesa das minas de cobre locais, cujo lucro poderia
sustentar uma diocese sediada em Joaseiro — tinham como objetivo conquistar a
simpatia do Vaticano e o restabelecimento de seu direito de pregar, ouvir
confissões e celebrar missas. E, longe de ser o "típico" coronel do
interior, protegido por lacaios armados, ele atuava como um conciliador nas
disputas entre os coronéis do Cariri. Se voltasse ao Brasil hoje, ele
provavelmente desfrutaria da companhia dos políticos mineiros, também reputados
como conciliadores. E aos membros do Congresso poderia dar um de seus
conhecidos conselhos: "Os que roubaram, não roubam mais!".
O ano de
2014 marca o centenário de dois eventos cruciais na trajetória de Cícero: a
morte de Maria de Araújo, a beata que protagonizou o suposto milagre, e a
Sedição de Juazeiro, quando ele colaborou com a derrubada do governador
cearense Franco Rebelo. Como esses eventos moldaram a imagem que temos hoje
dele?
Sem Maria
de Araújo o milagre nunca teria ocorrido. E sem sua crença nele, a integridade
de Padre Cícero, que compartilhava dessa crença, teria sido destruída. Os dois
se mantiveram firmes diante das tribulações que as autoridades da Igreja lhe
impuseram. A “revolução de 1914” — a derrota de Franco Rabelo, os sonhos
esmagados da incipiente classe média de Fortaleza, e a parcial restauração da
velha oligarquia dos Accioli — foi rotulada pelos adversários como uma
"sedição" e Padre Cícero, como seu malévolo arquiteto. Esse episódio
consolidou a imagem de uma elite urbana e educada do litoral em oposição aos
coronéis retrógrados do interior e seus jagunços — a imagem de duas sociedades
apartadas, sendo que a segunda merecia ser destruída. Esse pensamento alimentou
o trabalho de muitos autores que escreveram sobre Joaseiro desde 1914. A melhor
expressão desse dualismo entre moderno e arcaico, de uma sociedade branca que
se crê superior a uma sociedade mestiça, está em “Os sertões”, de Euclides da
Cunha, embora uma leitura cuidadosa revele que Euclides tinha reservas quanto a
esse dualismo.
Em um
ensaio antigo, você escreve que Canudos e Juazeiro do Norte desafiam a visão
"dualista" do Brasil como uma oposição entre centros urbanos
"modernos" no litoral e uma sociedade rural "arcaica".
Quais são as relações entre esses dois casos?
Canudos
foi a destruição das promessas da República para o futuro da nação. Joaseiro
foi o exato oposto: a reunião, ainda que sob outra bandeira, dos mesmos pobres
e destituídos que o Exército massacrou no sertão da Bahia. Canudos e Joaseiro
só podem ser “explicados” no contexto da história brasileira e no contexto
internacional da Igreja Católica, nas disputas regionais por poder político e
nos rumos sempre instáveis do mercado internacional. Antonio Conselheiro e
Padre Cìcero não eram fanáticos, nem aberrações, nem charlatões. Pelo
contrário, ambos a princípio assumiram papéis legitimados pela sociedade
brasileira e pela Igreja Católica. Mas quando Estado e Igreja perceberam que
sua autoridade podia ser questionada, decidiram dar uma lição a Conselheiro e a
Cícero. O primeiro teve o corpo exumado, a cabeça decapitada e a reputação
poluída até ser reabilitada por historiadores décadas depois. O segundo perdeu
os direitos eclesiásticos, foi ameaçado com a excomunhão, por Roma, e com a
destruição de Joaseiro, por Franco Rabelo. Talvez o maior "milagre"
do Padim tenha sido a sobrevivência de Joaseiro, que hoje é a segunda cidade do
Ceará em população, renda, educação, hospitais e comércio.
Qual foi a
importância do período vivido em Juazeiro do Norte para sua compreensão da
cidade e de Padre Cícero?
Só posso
agradecer por ter chegado a Joaseiro antes de a novela das oito consumir cada
segundo do tempo livre de seus habitantes. Na época, os Joaseirenses ainda
passavam as noites sentados em cadeiras de balanço nas calçadas, conversando.
Eu morava no Colégio Salesiano, onde passava os dias copiando os arquivos de
Padre Cícero, e minha mulher e meus dois filhos encontraram um porto seguro no
quarto de hóspedes de um convento de freiras, que não hesitaram em se tornar
"tias" das crianças. Em cada roda de conversa nas calçadas eu
aprendia mais sobre a cidade e seu passado. Por exemplo, foi ali que aprendi
pela primeira vez sobre a clivagem histórica entre os “filhos da terra” e os
“forasteiros”. Ou sobre a eterna luta dos nativos para se tornar prefeito. Eu
poderia continuar, mas, resumindo, esta é a história de um historiador que se
tornou antropólogo, apesar de si mesmo.
POR GUILHERME FREITAS
O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário