Em todas as atividades que exerceu, como diplomata, poeta, músico
ou boêmio, o carioca Vinicius de Moraes nunca largou a maior fonte do
seu viver: a paixão. Se ainda aqui estivesse, completaria hoje 100 anos,
regados, talvez, a muitas doses de uísque. Para comemorar a data, o
Jornal do Commercio dá início hoje a uma série que homenageia o
poetinha, uma dos ícones do Brasil do século 20. Até a terça-feira,
serão abordados diferentes aspectos da sua vida e obra: a poesia, o amor
pela bebida e pela comida, as inúmeras parcerias musicais, as amizades
pernambucanas e os textos jornalísticos. Saravá, poetinha mais querido
do Brasil.
Carlos Drummond de Andrade muito disse sobre a vida de Vinicius, mas a
definição mais precisa do mestre mineiro talvez tenha sido sobre sua
produção poética. O poetinha, para ele, tinha “o fôlego dos românticos, a
espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (...) e,
finalmente, homem bem de seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido
cinismo dos modernos”.
Se um dos maiores nomes da literatura brasileira precisava citar ao
menos quatro períodos literários para tentar captar um pouco da verve do
poetinha, é bom desistir de qualquer tentativa de simplificá-lo.
Vinicius, o poeta, é tão diverso quanto possível, desde o seu começo na
poesia metafísica, sob influência de Augusto Frederico Schmidt e do seu
primeiro mestre, o conservador Otávio de Farias, até a coexistência
entre os temas líricos, a preocupação formal e elementos modernos,
posteriormente.
“A questão em Vinicius, a meu ver, não é a relação com a tradição ou
com o modernismo. Era o fato de ele querer experimentar de tudo. Isso
fazia parte do espírito inquieto dele. E não era só na literatura: ele
casou com nove mulheres, todas diferentes entre si, os parceiros
musicais todos foram de personalidades e estilos distintos. Ele viveu
tudo, queria tudo. Era um insatisfeito, sem fronteiras e sem
preconceitos”, explica ao Jornal do Commercio o biógrafo do autor, o jornalista e escritor carioca José Castello.
Não é por acaso que, para ele, o “poeta da imperfeição” é um
modernista apenas cronologicamente. O pesquisador e professor da PUC-Rio
Miguel Jost destaca essa independência de Vinicius de Moraes. “Ele é
alguém que teve uma liberdade estética enorme. Ele aparece primeiro como
um poeta que representa uma resistência ao que o modernismo havia
proposto. Depois, tem uma transição, quando passa a incorporar parte dos
pensamentos modernos”, aponta. Para a professora da Pós-Graduação em
Letras da UFPE, Lucila Nogueira, ele e Cecília Meireles são dois nomes
que escapam ao que se entende por modernismo. “Os dois fizeram uma
espécie de ‘neosimbolismo’ que não tinha a radicalidade do movimento
paulista”, comenta a escritora. “Existem os poetas que surgem para
inovar e os poetas que surgem para dar continuidade – esse último é o
caso dele”.
SONETO
Essa tensão entre elementos modernos,
lirismo e cuidado formal pode ser vista em um aspecto da sua obra. O
soneto, para ele, era “uma prisão sem barreiras, sem grades. Só dentro
da prisão que ele encerra se pode atingir a liberdade maior”. Com a
forma fixa, consagrou no imaginário brasileiro ao menos três de seus
poemas: Soneto da separação, Soneto do amor total e, claro, Soneto da fidelidade.
“Ele redesenha o soneto dentro da tradição brasileira. Também avança
em questões românticas, simbolistas. Isso acabou criando um problema,
porque ele nunca se enquadrou dentro de nenhum escaninho existente. É
por isso que, por muito tempo, ele não foi considerado parte do cânone
dentro da universidade – só nos últimos 20 anos passou a ser devidamente
valorizado como autor de envergadura maior”, explica Miguel Jost.
Os sonetos são um exemplo perfeito de como o lirismo encontra a
grande pesquisa literária do autor – tal qual lembra Jost, as paixões e
boemias de Vinicius de certa forma escondem sua dedicação ao labor
poético. O carioca foi um grande leitor de franceses como Baudelaire e
da tradição inglesa, especialmente dos sonetos de Shakespeare.
Castello acrescenta outra possível razão para o apreço pela forma: a
formação no Colégio Santo Inácio, onde o poeta estudou. “Eu também
estudei lá. Os padres gostavam muito de ensinar sobre sonetistas”,
especula. “O que importa é que Vinicius, sem dúvida, é um dos maiores
sonetistas da língua portuguesa”.
O poeta e ensaísta Carlos Felipe Moisés, autor de Vinicius de Moraes,
literatura comentada, destaca que um dos traços da sua obra era a
“conciliação dos contrários, a perfeita e paradoxal fusão de ordem e
caos, instinto e razão, explosão emotiva e autocontenção”. “Para os
mortais comuns, é isto ou aquilo, uma coisa ou outra, alternadas. Para o
grande poeta, é uma coisa só”, ele define. “Os sonetos – exemplares em
Vinicius – são um bom exemplo dessa coexistência ou fusão dos
contrários”.
Jornal do Commercio
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