Defensor de uma arte sem amarras, o multipoeta baiano
propagou sua antropofagia e anarquia pessoais a poemas, prosa, artes visuais,
capas de discos e artistas da MPB
A transa do
poeta multimídia Waly Salomão (1943-2003) – quando o sexo ainda era significado
secundário para o verbete – sempre foi pela palavra escrita, e pela palavra com
a possibilidade de ser declamada, talvez cantada. O baiano, filho de um sírio
com uma sertaneja, se foi há exatamente uma década, no dia 5 de maio de 2003,
aos 59 anos. Defensor ferrenho de uma arte sem amarras, ele propagou sua
antropofagia e anarquia pessoais a poemas, prosa, artes visuais, capas de
discos e artistas da MPB – além de ter estado à frente, por um curto período de
tempo, de gabinetes de política cultural.
Não fosse o tumor fatal no intestino, que
acabou causando metástase no fígado, Waly teria dado prosseguimento à
recém-iniciada empreitada como secretário do Livro e da Leitura, cargo
oferecido pelo então ministro da Cultura Gilberto Gil, meses antes de sua
morte. No início da nota oficial sobre o falecimento do poeta-secretário,
trechos de Vapor barato, o hino da
contracultura brasileira escrito por ele, musicado por Jards Macalé e tornado
perene na voz de uma Gal fatal: “Oh, sim, eu estou tão cansado / Mas não pra
dizer / Que eu tô indo embora”. Era o adeus ao honey baby.
"Waly sempre foi muito atuante. A presença dele já era
performática. Ele pintava os lábios de vermelho e frequentava festas populares
em Salvador, nos anos 1960. O cotidiano dele era um conjunto de performances”,
lembra o professor Jomard Muniz de Britto, agitador cultural como o baiano. JMB
dá um alerta sobre interpretações rápidas sobre a poesia de Waly: “Ele tinha
uma poética muito elaborada, nada de ser uma coisa espontânea, aleatória. Tem
muita erudição ali, uma transerudição, porque ele era representante de uma
estética pop – ele usava isso para golpear a hierarquia entre a dita alta
cultura e a cultura massificada”, defende.
Foi através da música popular brasileira que a
poesia de Waly foi melhor propagada. O rapaz manteve por aqui a resistência
tropicalista, com o desbunde carioca, quando Gil e Caetano estavam exilados em
Londres, em 1971. Ele fez Gal gritar por sua honey baby, pedir luz do sol e
vestir a máscara do mal secreto no espetáculo Fa-Tal – Gal a todo vapor,
concebido por ele. Com título inspirado em um de seus poemas, o protesto virou
disco duplo repleto de fotos-poema do show. De Gal, ainda dirigiu o show Índia (1973) e os álbuns Bem
bom (1985) e Plural (1990).
Depois de Maria Bethânia ganhar Anjo exterminado de presente para o discoDrama (1972), que virou subtítulo
para a obra, Waly ainda nomearia outros álbuns da irmã de Caetano com canções
que reverenciavam a abelha-rainha:Mel, Talismã e Alteza,
entre 1979 e 1981. Adriana Calcanhotto e Cássia Eller também contaram com o
poeta para letras, além de Caetano, Gil, João Bosco, Moraes Moreira, Roberta
Miranda, Frejat e Itamar Assumpção.
Nas artes plásticas, a principal
expressão de Waly foram os Babilaques, uma série de propostas visuais em que
cadernos manuscritos eram abertos em uma certa página determinada pelo artista
e fotografados em diversos ambientes inusitados, também escolhidos por ele. A
influência do artista Hélio Oiticica, de quem Waly escreveu a biografia Qual é
o parangolé?, está presente nos trabalhos (foi Oiticica quem apostou no livro
de estreia de Waly, Me segura qu'eu vou dar um troço,
e também diagramou).
Talvez a melhor definição para o multilegado deixado pelo poeta
esteja nos versos de Waly Salomão, canção que
Caetano lançou no disco Cê, três anos após a morte
do amigo: “Findaste o teu desenho/ e a tua marca sobre a terra resplandece/
resplandece nítida e real/ entre livros e os tambores do vigário geral/ e o
brilho não é pequeno”.
Confira
abaixo, na íntegra, o documentário Pan-cinema permanente, de Carlos Nader
JC
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