O cantor, ator, dançarino e
tocador pernambucano Antônio Nóbrega completa 40 anos de uma carreira marcada
pela defesa das expressões populares e eruditas da cultura nordestina
Às
pressas, Antônio Nóbrega adentra os corredores da produtora que mantém no
efervescente bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Breca para cumprimentar uma
conhecida que consultava os livros da biblioteca. Troca afetuosas palavras e se
dirige à sala onde o Viver o aguardava. No rosto, porta uma expressão de
cansaço. Justifica-se pelos 27 minutos de atraso e atribui ao trabalho: os
preparativos para a estreia do espetáculo Humus, um dia depois, estavam lhe
deixando exausto. Inquieto, acomoda-se no sofá e inicia a entrevista: “Sobre o
que vamos falar?”.
Foi quase hora e meia de conversa. E, embora fizesse uma “ginástica mental” para responder, com precisão, a perguntas sobre os 40 anos de carreira, completados em 2013, o pernambucano não ficou satisfeito. Cinco dias após o encontro, enviou e-mail dizendo ter sido “tomado por certa sensação de incompletude” e “pediu” uma segunda chance. Ao telefone, revisitou a conversa. Por e-mail, complementou.
A inquietude e a devoção ao trabalho revelam outra característica do artista, considerado um dos expoentes da classe por unir o erudito ao popular em danças, cantos e interpretações. Nóbrega é um perfeccionista capaz de incontáveis ajustes na própria obra. Em Segundas histórias (1994), reduziu, de um dia para o outro, 30 minutos do espetáculo. “Pior é ficar com a nostalgia de uma coisa que poderia ter ficado melhor”, diz.
A autoanálise do trabalho é feita na casa vizinha à produtora, onde fixou o Instituto Brincante, há pouco mais de 21 anos. O espaço é uma espécie de templo da cultura popular. O idealizador, o sacerdote. Brincante, nome utilizado no Nordeste para identificar artistas populares dedicados aos folguedos, é também como se autointitula Nóbrega. O termo batiza o projeto teatral em que o autor contracenou, pela primeira vez, com a esposa, Rosane Almeida. Foi com o desejo de levar o espetáculo a São Paulo que o casal chegou aos galpões ocupados hoje pelo centro, “cuja natureza é apresentar um Brasil ainda pouco valorizado”. “Corro o risco de ser ufanista, mas é uma atitude de fascínio. À medida que eu me envolvi, descobri que podíamos oferecer uma usina de material vivo para subsidiar o artista”, revela.
Instalado há mais de 30 anos em São Paulo, Nóbrega não pensa em retornar à cidade que o projetou. Não figura mais na programação carnavalesca do Recife. “Já não me enquadro”, esclarece. À capital pernambucana, no entanto, deve boa parte da bagagem artística. Aqui, aprendeu a tocar violino, aos oito anos, por incentivo do pai. “É muito tempo de convívio com o instrumento. Digo a Rosana que ela se casou com um homem que já tinha uma amante”, brinca. Paralelamente, manteve um conjunto de música popular com as irmãs. Ingressou na Escola de Belas Artes do Recife, onde conheceu um de seus mentores, o professor e poeta Luís Soler.
Nos anos 1970, em função de uma peça bem executada de Bach (Conserto em mi maior) foi convidado por Ariano Suassuna a integrar o Quinteto Armorial. “Pude direcionar e potencializar melhor a minha vocação de artista generalista, multidisciplinar ou multifacetado, como alguns dizem.” O contato com a cultura popular e todas as suas expressões fez Nóbrega se debruçar sobre as manifestações em viagens Brasil adentro. De seus achados, tirou insumos para espetáculos memoráveis, como Figural (1990), em que, sozinho, aparece em cena, trocando de roupa e de máscaras, e 9 de Frevereiro (2006), onde explora formas diversas de tocar e de dançar o frevo, ambos resgatados em ocupação, no Itaú Cultural, em São Paulo. Levou parte da obra ao exterior. Esteve em Portugal, na Bulgária e Rússia, onde foi ovacioanado pelo público e pela crítica.
E chegou ao cinema. Com previsão de lançamento no segundo semestre, filme Brincante traz olhar lírico da cultura popular com viagem musical guiada pelos personagens João Sidurino e Rosalina, de Brincante e Segundas Histórias, encenados por Nóbrega e Rosane de Almeida. Filme de Walter Carvalho está na fase de finalização.
Na mais recente empreitada, o artista lançou na capital paulista a Cia. Antonio Nóbrega de Dança, na semana passada. O grupo, formado por 13 bailarinos, com origens e formações artísticas diferentes, preparou-se durante um ano e meio para a estreia do espetáculo Humus. “Através da dança, eu procuro dar sentido ao meu percurso artístico”, justifica o artista que, em nome da cultura, mantém-se submerso nas manifestações populares há quatro décadas. O saldo, ainda que distante da vista dos conterrâneos, é a exaltação da identidade nordestina. Pernambuco, silencionamente, agradece. Nóbrega, também.
Foi quase hora e meia de conversa. E, embora fizesse uma “ginástica mental” para responder, com precisão, a perguntas sobre os 40 anos de carreira, completados em 2013, o pernambucano não ficou satisfeito. Cinco dias após o encontro, enviou e-mail dizendo ter sido “tomado por certa sensação de incompletude” e “pediu” uma segunda chance. Ao telefone, revisitou a conversa. Por e-mail, complementou.
A inquietude e a devoção ao trabalho revelam outra característica do artista, considerado um dos expoentes da classe por unir o erudito ao popular em danças, cantos e interpretações. Nóbrega é um perfeccionista capaz de incontáveis ajustes na própria obra. Em Segundas histórias (1994), reduziu, de um dia para o outro, 30 minutos do espetáculo. “Pior é ficar com a nostalgia de uma coisa que poderia ter ficado melhor”, diz.
A autoanálise do trabalho é feita na casa vizinha à produtora, onde fixou o Instituto Brincante, há pouco mais de 21 anos. O espaço é uma espécie de templo da cultura popular. O idealizador, o sacerdote. Brincante, nome utilizado no Nordeste para identificar artistas populares dedicados aos folguedos, é também como se autointitula Nóbrega. O termo batiza o projeto teatral em que o autor contracenou, pela primeira vez, com a esposa, Rosane Almeida. Foi com o desejo de levar o espetáculo a São Paulo que o casal chegou aos galpões ocupados hoje pelo centro, “cuja natureza é apresentar um Brasil ainda pouco valorizado”. “Corro o risco de ser ufanista, mas é uma atitude de fascínio. À medida que eu me envolvi, descobri que podíamos oferecer uma usina de material vivo para subsidiar o artista”, revela.
Instalado há mais de 30 anos em São Paulo, Nóbrega não pensa em retornar à cidade que o projetou. Não figura mais na programação carnavalesca do Recife. “Já não me enquadro”, esclarece. À capital pernambucana, no entanto, deve boa parte da bagagem artística. Aqui, aprendeu a tocar violino, aos oito anos, por incentivo do pai. “É muito tempo de convívio com o instrumento. Digo a Rosana que ela se casou com um homem que já tinha uma amante”, brinca. Paralelamente, manteve um conjunto de música popular com as irmãs. Ingressou na Escola de Belas Artes do Recife, onde conheceu um de seus mentores, o professor e poeta Luís Soler.
Nos anos 1970, em função de uma peça bem executada de Bach (Conserto em mi maior) foi convidado por Ariano Suassuna a integrar o Quinteto Armorial. “Pude direcionar e potencializar melhor a minha vocação de artista generalista, multidisciplinar ou multifacetado, como alguns dizem.” O contato com a cultura popular e todas as suas expressões fez Nóbrega se debruçar sobre as manifestações em viagens Brasil adentro. De seus achados, tirou insumos para espetáculos memoráveis, como Figural (1990), em que, sozinho, aparece em cena, trocando de roupa e de máscaras, e 9 de Frevereiro (2006), onde explora formas diversas de tocar e de dançar o frevo, ambos resgatados em ocupação, no Itaú Cultural, em São Paulo. Levou parte da obra ao exterior. Esteve em Portugal, na Bulgária e Rússia, onde foi ovacioanado pelo público e pela crítica.
E chegou ao cinema. Com previsão de lançamento no segundo semestre, filme Brincante traz olhar lírico da cultura popular com viagem musical guiada pelos personagens João Sidurino e Rosalina, de Brincante e Segundas Histórias, encenados por Nóbrega e Rosane de Almeida. Filme de Walter Carvalho está na fase de finalização.
Na mais recente empreitada, o artista lançou na capital paulista a Cia. Antonio Nóbrega de Dança, na semana passada. O grupo, formado por 13 bailarinos, com origens e formações artísticas diferentes, preparou-se durante um ano e meio para a estreia do espetáculo Humus. “Através da dança, eu procuro dar sentido ao meu percurso artístico”, justifica o artista que, em nome da cultura, mantém-se submerso nas manifestações populares há quatro décadas. O saldo, ainda que distante da vista dos conterrâneos, é a exaltação da identidade nordestina. Pernambuco, silencionamente, agradece. Nóbrega, também.
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A repórter viajou à convite do Itaú Cultural
ENTREVISTA
Você, inicialmente, descobriu-se como músico. Como incorporou a dança?
Foi, digamos, amor à primeira vista. Ela veio colada ao meu interesse pela cultura popular. Quando bati os olhos na dança dos Mateus, dos passistas de frevo e dos dançadores do caboclinho, o negócio me pegou... e não me largou mais. Não sabia realmente que iria tão longe em meus interesses. Mas descobri através da dança e, além dela, uma maneira de entender melhor o meu país.
Como se revelou o Nóbrega ator?
Através do personagem Tonheta. Ele é o coração do meu universo teatral. O ator Nóbrega está presente nesse personagem picaresco e no seu alter ego, o mestre de cerimônias João Sidurino.
E escrever?
Ando muito entusiasmado com a ideia. Aliás, nunca parei de escrever. Mesmo porque algumas das minhas canções têm letra e música minhas. Mas o fato é que acho que descobri, agora aos 60 anos, o território onde me sinto bem escrevendo. É a mesma sensação que sinto ao dançar, tocar… O que tenho escrito vai mais na linha do ensaio do que da ficção. Mas eu gosto de escrever de uma maneira, digamos, lúdica, sem o rigor formal da academia.
Você se considera um pesquisador da cultura popular?
Não inteiramente. Digamos que eu seja um artista-pesquisador. Aliás, já li que algumas vezes as pessoas estão me considerando um intelectual ou um teórico pelas pabulagens que falo. Realmente eu tenho essa aderência ao espírito reflexivo, intelectual mesmo. E isso tem a sua razão. Tenho três precedentes impulsionadores. Meu avô, Manoel Nóbrega, um intelectual, foi um deles. Tinha uma biblioteca monumental, de onde provém meu amor aos livros. O outro foi o meu professor de violino Luís Soler, um homem de boa conversa, que conversava comigo sobre assuntos que transcendiam o universo do instrumento. E Ariano Suassuna, que, quando eu tinha por volta de 20 anos, me escutava em relação às minhas dúvidas se eu devia seguir o caminho da música ou da literatura.
Como é o seu processo de criação?
As ideias vêm e eu as agarro no ar, sem um plano. Não acredito em inspiração, pelo menos no sentido místico que gostamos de atribuir a ela. Como as ideias vêm com uma certa frequência e em quantidade, não me preocupo. Tenho uma espécie de estoque de ideias que me dão um certo conforto criativo.
Como o público do exterior reage ao seu trabalho?
Sempre generosamente. Digo isso sem nenhuma presunção. O pitoresco e exótico da arte brasileira seduzem bastante. Mas não há dúvidas de que o Brasil não é entendido integralmente lá fora. Aliás, o Brasil ainda não é nem bem compreendido entre nós. Às vezes, penso que ainda teremos de gastar muito tempo no esforço de nos entendermos e saber das nossas verdadeiras riquezas. Uma difícil tarefa, mas quem sabe?
Você, inicialmente, descobriu-se como músico. Como incorporou a dança?
Foi, digamos, amor à primeira vista. Ela veio colada ao meu interesse pela cultura popular. Quando bati os olhos na dança dos Mateus, dos passistas de frevo e dos dançadores do caboclinho, o negócio me pegou... e não me largou mais. Não sabia realmente que iria tão longe em meus interesses. Mas descobri através da dança e, além dela, uma maneira de entender melhor o meu país.
Como se revelou o Nóbrega ator?
Através do personagem Tonheta. Ele é o coração do meu universo teatral. O ator Nóbrega está presente nesse personagem picaresco e no seu alter ego, o mestre de cerimônias João Sidurino.
E escrever?
Ando muito entusiasmado com a ideia. Aliás, nunca parei de escrever. Mesmo porque algumas das minhas canções têm letra e música minhas. Mas o fato é que acho que descobri, agora aos 60 anos, o território onde me sinto bem escrevendo. É a mesma sensação que sinto ao dançar, tocar… O que tenho escrito vai mais na linha do ensaio do que da ficção. Mas eu gosto de escrever de uma maneira, digamos, lúdica, sem o rigor formal da academia.
Você se considera um pesquisador da cultura popular?
Não inteiramente. Digamos que eu seja um artista-pesquisador. Aliás, já li que algumas vezes as pessoas estão me considerando um intelectual ou um teórico pelas pabulagens que falo. Realmente eu tenho essa aderência ao espírito reflexivo, intelectual mesmo. E isso tem a sua razão. Tenho três precedentes impulsionadores. Meu avô, Manoel Nóbrega, um intelectual, foi um deles. Tinha uma biblioteca monumental, de onde provém meu amor aos livros. O outro foi o meu professor de violino Luís Soler, um homem de boa conversa, que conversava comigo sobre assuntos que transcendiam o universo do instrumento. E Ariano Suassuna, que, quando eu tinha por volta de 20 anos, me escutava em relação às minhas dúvidas se eu devia seguir o caminho da música ou da literatura.
Como é o seu processo de criação?
As ideias vêm e eu as agarro no ar, sem um plano. Não acredito em inspiração, pelo menos no sentido místico que gostamos de atribuir a ela. Como as ideias vêm com uma certa frequência e em quantidade, não me preocupo. Tenho uma espécie de estoque de ideias que me dão um certo conforto criativo.
Como o público do exterior reage ao seu trabalho?
Sempre generosamente. Digo isso sem nenhuma presunção. O pitoresco e exótico da arte brasileira seduzem bastante. Mas não há dúvidas de que o Brasil não é entendido integralmente lá fora. Aliás, o Brasil ainda não é nem bem compreendido entre nós. Às vezes, penso que ainda teremos de gastar muito tempo no esforço de nos entendermos e saber das nossas verdadeiras riquezas. Uma difícil tarefa, mas quem sabe?
Camila Souza
DP
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