RIO - Ao responder de onde vem sua
poesia suja e terna, Aldir Blanc inicia com um “essa é fácil”:
— Da infância em Vila Isabel e da
adolescência braba no Estácio. Estou convencido de que, no fundo, quem “letra”
é o menino e o adolescente. Os cacos que sobraram.
O olhar desse menino e desse
adolescente está exposto de forma inteira em “Aldir Blanc — Resposta ao tempo”
(Casa da Palavra), do jornalista Luiz Fernando Vianna — o lançamento é nesta
quarta-feira, às 19h, na Livraria Argumento (Rua Dias Ferreira, 417). Ele
aparece não só na história de vida contada no livro (que documenta a formação
desse olhar), mas também impresso nas mais de 450 letras incluídas ali — cerca
de cem inéditas.
— Se o livro tem algum mérito,
sobretudo para quem gosta das letras do Aldir, é mostrar, ainda que
resumidamente, como essa cabeça poética se formou — diz o autor. — É esse paraíso
da infância, mas com a doença da mãe pairando, o inferno da adolescência, o
novo paraíso da primeira juventude, o inferno da perda das filhas gêmeas (em
1974, as meninas prematuras morreram ao nascer)... Emoções intensas na vida de
um cara sensível e obcecado por leituras. Deu o caldo que deu.
Em meio às letras (escritas para
melodias de parceiros como João Bosco, Guinga, Moacyr Luz, Edu Lobo e Maurício
Tapajós), há clássicos
como “Amigo é pra essas coisas” (o
primeiro sucesso), “Incompatibilidade
de gênios”, “Kid Cavaquinho”, “O bêbado e a equilibrista”, “O ronco da cuíca”, “O mestre-sala dos mares”, “Corsário”, “Nação”, “Saudades da Guanabara”, “Catavento e girassol” e “Resposta ao tempo”. Mas
há também belezas menos lembradas, como “Adolescente” (“Aos hipócritas que
estão no júri/ Tenho a declarar que não sou culpado/ E não sou inocente/ De ter
me envolvido/ Com uma adolescente”), “Viena fica na 28 de Setembro” (“Pobres
balconistas de paquete, de ar infeliz/ São novas Bovarys”) ou “Valsa do
Maracanã” (“Quando eu ficar assim/ Morrendo após o porre/ Maracanã meu rio/ Ai
corre me socorre”). Mas as inéditas — veja os comentários de Aldir sobre
algumas delas no link acima — carregam um charme especial para o fã. Algumas
devem ser gravadas, como “Duro na queda” e “Modinha do contra” (ambas com João
Bosco). Outras ficaram esquecidas no tempo, por motivos que nem o poeta sabe
bem:
— Quando acreditavam no tal mercado, do
qual sempre desconfiei, a culpa era dele. Depois veio a fraude em Wall Street e crash!
Tem a pirataria e os ferozes adeptos do “liberou geral”. Deve ser uma mistura
de tudo isso, junto com a falência da “ética protestante do capitalismo” —
ironiza.
Camisinhas e torresmos
Vianna também chama a atenção para uma
das inéditas presentes no livro:
— Gosto muito de uma que é só do Aldir,
muitas vezes um inspirado melodista. “Outras línguas”, dos anos 1980, fala de
como o amor pode derrotar, ainda que provisoriamente, as angústias e as ânsias
destrutivas e autodestrutivas. Um tanto autobiográfica, imagino.
O próprio Aldir admite que as letras,
ao longo dos anos, carregam parte de sua biografia:
— Elas meio que acompanham minha vida,
com suas alegorias e seus desenganos — resume.
Atravessando inéditas e famosas, os
versos que dão força poética (ora com humor, ora de forma amorosa) a imagens
cruas como absorventes e camisinhas que descem o rio poluído (“Valsa do
Maracanã”), torresmos e moelas num botequim (“Entre o torresmo e a moela”) e
exames de HIV (“Carta de pedra”). Dorival Caymmi cravou uma definição clássica
para Aldir: “ourives do palavreado”. Luiz sintetiza:
— Superar Caymmi não dá. Mas Aldir é um
cara que mostra que há luxo no lixo e lixo no luxo. Por isso tanta gente torce
o nariz para ele. Não percebe que está sentindo o próprio cheiro.
O autor nota que, apesar do estilo
marcante, Aldir apresentou mudanças em sua poesia com o passar dos anos:
— Ele nunca foi linear, cartesiano na
maneira de escrever, mas talvez em boa parte das canções dos 1960 e 1970
houvesse interesse em contar histórias, fazer crônicas amarradas, narrar casos
de amor. Dos 1980 para cá, acho que ele foi se desligando disso e fazendo
viagens mais livres, inventando neologismos, exacerbando suas paixões, as pró e
as contra. Essa forma de criar letras ainda mais livre também tem a ver com
Guinga, cujas melodias assimétricas, difíceis, ajudaram a soltar certos bichos
do Aldir.
LEONARDO LICHOTE
O Globo
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