Às vésperas de completar 90 anos, a escritora faz das memórias uma contínua celebração da vida e lembra sua trajetória sempre marcada por 'vocação e paixão'
Lygia Fagundes Telles mora quase na esquina da rua Oscar Freire, em São Paulo. Sai pouco de casa mas, quando sai, gosta de conversar com leitores, a quem chama de cúmplices, adora quando eles vêm lhe tomar satisfação sobre um personagem. De quando em vez, janta fora com amigos. Vai quase toda semana ao chá da Academia Paulista de Letras. À Academia Brasileira, no Rio, vai pouco agora, porque anda de birra com aviões e aeroportos, “muitos cheios e apertados”. É avó duas vezes, de Lúcia e Margarida; bisavó de Marina e ainda fuma cigarro “quando dá aquela saudade”. Lygia é, sobretudo, escritora (acima, ela lê trecho do conto “A disciplina do amor”). Considerada uma das melhores ficcionistas brasileiras, autora de romances como “As meninas” e “Ciranda de pedra”, entre outros clássicos, gosta de “lutar com as palavras”, como dizia o amigo Carlos Drummond de Andrade. E comemora 90 anos no próximo dia 19 sem nunca ter parado de escrever, desde menina. Inéditos? Sim, ela tem. Festa? Não, ela não quer chá especial na Academia, nem vai ao Rio para as homenagens que acontecerão dia 18 no Instituto Moreira Salles (IMS), para onde doou seu acervo em 2004. Lygia, no entanto, agradece o carinho.
— Tenho birra de aniversário desde os 10 anos, quando já escrevia e minha mãe me preparou uma festa linda. Minhas amigas não apareceram. Eu era “alucinadote”, esqueci de dar os convites e só descobri quando a festa já tinha começado. Aniversário é uma data boa quando se é jovem. Depois da velhice brutal, chega, não quero mais.
O encontro acontece em seu apartamento. Quem lê assim esta frase, logo no início da conversa, pode achar que Lygia entristeceu. Bobagem. A “velhice brutal” é dita repleta de doçura, com um sorriso largo no rosto (“A Clarice Lispector, que quase nunca sorria, dizia para eu rir menos se quisesse ser levada a sério, mas não adianta, sou risonha mesmo”).
As frases vêm acompanhadas de presentinhos. Lygia oferece fotos, de 1941, com as amigas de da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (“éramos poucas e todas virgens, acabei me casando com um professor”, conta, lembrando sua união com Goffredo da Silva Telles Júnior, da qual nasceu seu único filho, Goffredo Neto, morto em 2006). Distribui, com dedicatória, seu livro preferido, “A disciplina do amor” (Companhia das Letras), reeditado com carinho por ela mesma em 2010 — além de vários recortes com textos seus e do segundo marido, o cineasta Paulo Emílio Sales Gomes. Lamenta não ter para dar a cópia de uma em que aparece, com Paulo Emílio, no túmulo de Karl Marx no Cemitério de Highgate, em Londres. A imagem foi capturada pelo jornalista Vladimir Herzog, em 1970, cinco anos antes de ele ser morto pela ditadura.
— O Paulo (fundador da Cinemateca Brasileira e morto em 1977) era comunista, amava o Marx, odiava o Getúlio Vargas. Quem me deu esta foto foi o filho do Herzog (Ivo) há pouco tempo. Guardarei para sempre.
Mesmo sem querer festa, Lygia usa a data para lembrar a vida. Tudo passa por “vocação e paixão”, expressão que repete sempre. São as memórias que a alegram, a fazem produzir e, especialmente, afastam qualquer medo da morte.
— Penso nos meus mortos, se vou estar com eles ou não.
Os mortos de Lygia já estão o tempo todo com ela, que não guarda datas porque, como já escreveu, “veio o vento e soprou o calendário”, mas conhece a riqueza dos detalhes. Ela quase não lê coisa nova, prefere reler Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral e Melo Neto e Guimarães Rosa, que “me fazem companhia, gosto deles e não me esqueço”. As lembranças. Com Paulo Emílio, por exemplo, descobriu Pasárgada.
— Eu amava o poema do Manuel Bandeira, achava lindo e dizia para ele: que bom que você inventou essa Pasárgada! E ele me dizia: “Lygia, mas ela existe”. Eu não acreditava, até que eu e Paulo fomos ao Irã e a visitamos (a cidade da antiga pérsia). Voltei para o hotel e mandei logo um cartão para o Manuel: “Manuel, tinha Pasárgada mesmo!”. Sempre fui um horror em geografia.
Com a amiga Clarice Lispector se divertiu num encontro literário em Bogotá. Imitando a língua presa de Clarice, Lygia conta que as duas fugiam para “beber e fumar” pelos bares colombianos.
— Clarice ficava louca com as esmeraldas colombianas, saíamos de braços dados pela Colômbia. Uns meninos ofereciam umas coisas para a gente na rua e a gente dizia: “Já somos loucas pela nossa natureza, não precisamos de nada mais”.
Clarice, aliás, é autora de um dos muitos eloquentes elogios feitos a Lygia ao longo de sua trajetória. “Com Lygia há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas, do jeitinho como escrevem, parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro: Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores”, escreveu Clarice certa vez.
Com Hilda Hirst, aprendeu o valor da amizade.
— Ela, Hilda e Nélida Piñon eram inseparáveis. A Hilda era muito desbocada. A Lygia é uma lady, não fala nenhum palavrão. As três começaram o feminismo no Brasil. E a Lygia era a menina mais bonita de nossos tempos de Largo São Francisco — diz o advogado Ives Gandra da Silva Martins, amigo e também membro da Academia Paulista de Letras, que fala com Lygia ao telefone toda semana e a leva para jantar de vez em quando.
De Antonio Candido, a escritora segue velhos conselhos. O primeiro é que “Ciranda de pedra (publicado em 1954) é o livro que deveria iniciar sua bibliografia.
— Antes disso, me disse o Antonio, minha obra não era madura. Joguei muita coisa fora. Acho que existe no jovem uma certa precipitação, é bom esperar um pouco, ter paciência antes de publicar — conta a autora, famosa por seu perfeccionismo e por trabalhar muito, exaustivamente, em um texto, coisa que atualmente faz à mão porque não foi conquistada pelo computador.
Outro conselho antigo seguido por Lygia é que, num texto literário, há três elementos obrigatórios: a ideia, os personagens e o enredo — mas ela, em nome da liberdade, despreza qualquer sequência.
— Às vezes a personagem vem primeiro. E ela volta para falar comigo, ou eu choro se a matei — diz Lygia.
Do argentino Jorge Luís Borges ouviu que era preciso sonhar para escrever bem. Do “português que ganhou o Nobel” (José Saramago), escutou elogios a seu conto “Pomba enamorada ou uma história de amor”. “Recentemente, estava eu a folhear alguns dos livros de Lygia Fagundes Telles (...), quando me detive nessa verdadeira obra-prima que é o conto ‘Pomba enamorada’. Reli-o uma vez mais, palavra a palavra, sílaba a sílaba, saboreando ao de leve a pungente amargura daquele mel”, escreveu Saramago.
— Lygia tem aquela coisa dos grandes escritores, de compromisso com a literatura, da literatura como missão. Decidiu logo cedo o destino dela — afirma Elvia Bezerra, coordenadora do acervo da escritora no IMS, que conta com cerca de 900 itens, incluindo uma bela e pouco conhecida correspondência entre Lygia e Erico Verissimo. — A Lygia era muito novinha quando começou a se corresponder com o Erico, então já um escritor consagrado, lhe deu a maior força para escrever.
A autora não desiste da luta com as palavras. Se Hilda Hirst era desbocada, Lygia se permite ao máximo um “merda” ao criticar editoras anteriores que mexeram em velhos contos seus. São alguns desses contos que, às vésperas dos 90, estão sendo reescritos por ela. Há também inéditos.
— Escrevo quando me dá vontade. Mas ainda não quero publicar, não estão prontos. Talvez ainda faça um novo livro. Vamos ver, tudo é um mistério.
Além de trabalho, amigos, família, Lygia é uma ávida leitora de jornal. Elogia a Comissão da Verdade (“é uma maravilha agora esta tirada do véu de um período que foi negro para o Brasil”) e dá um conselho à presidente Dilma Rousseff.
— Pare de viajar tanto. Eu já estive na China e lá há um provérbio antigo que diz: “Antes de aperfeiçoar o mundo, dê três voltas dentro da sua casa”. A casa dela, o Brasil, ainda não está arrumada.
Também comenta a recente decisão da cantora Daniela Mercury em revelar sua homossexualidade. Acha que ela fez “a coisa certa” ao criticar o deputado e pastor Marco Feliciano, porém diz que, se fosse ela, “não sairia por aí falando que tá morando com uma mulher”.
— Mas sou super a favor de que o ser humano faça o que ele quiser, todo o mundo é livre, a vida é curta. E o século XXII vai ser o século dos gays, pode escrever isso aí.
Lygia se despede dizendo que gostaria de encontrar seus mortos.
— Penso nisso, mas suspendo o juízo. O importante é, enquanto estiver viva e lúcida, com a cabeça boa, trabalhar e fazer o que você ama. Vocação e paixão. Voilà.
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