No alto, Téti e o produtor Walter Silva; ao lado, com Rodger e as capas do álbum fotos: acervo de téti
Era janeiro de 1973. O casal Rodger Rogério e Teti e o amigo deles, Ednardo, então radicados em São Paulo, voltaram a Fortaleza, aproveitando as férias escolares. O trio carregava debaixo do braço a consagração da viagem: o LP "Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem". A vitrola do Centro Acadêmico da Escola de Arquitetura dessa vez poderia ser embala pelo mais novo lançamento da Continental (hoje, de propriedade da Warner Music), o disco que lançou ao mundo os sonhos e a música do Pessoal do Ceará.
"Impossível dizer como tudo começou", anunciava o texto de abertura, assinado por Ednardo e Rodger Rogério, que, na falta de um manifesto para a turma que estava sendo anunciada, apresentava aquela geração de músicos cearenses, suas "tertúlias-etílico-lítero-musical e badernosas". Uma turma que frequentava a universidade pública e o Bar do Anísio, "onde se bebia todas as fossas, todas as alegrias e se aguardava o sol".
Anunciavam ainda a herança cultural destes jovens que, além das referências de Beatles e Bossa Nova, traziam na bagagem "os galos e cangaceiros de Aldemir Martins", "os dragões do Chico da Silva", o tom "revolucionário, sério, satírico, cultural e de danações em geral da Padaria Espiritual". Eles estavam ali para apresentar um mundo de canções inteiramente novas ao Brasil, que concentrava-se em São Paulo e no Rio. Um país que, anos antes, foi tomado por baianos tropicalistas e mineiros do Clube da Esquina, e que, agora, voltaria os olhos e ouvidos para o Ceará.
"Eu voltei morrendo de medo da negada vaiar a gente", relembra Rodger, aos risos. Há 40 anos, sua famosa timidez era um desafio a mais, na hora de cantar suas composições. Contando com arranjos do maestro Hareton Salvanini e direção musical de Walter Silva, o Pica-Pau, o disco reuniu, além dos três intérpretes, músicas de outros seis compositores cearenses. No repertório, estavam "Ingazeiras", de Ednardo; "Cavalo Ferro", de Fagner e Ricardo Bezerra; "Dono dos teus olhos", clássico de doutor do Baião, Humberto Teixeira; e aquela que seria o grande sucesso do LP, "Terral", de Ednardo.
Segundo Rodger, quando o disco chegou nas rádios, a música "Terral" começou a tocar muito, tanto no Rio como São Paulo. "Ela começou a puxar o disco, que acabou tendo uma carreira além do esperado", conta. Esperado ou não, o certo é que o sucesso do disco coletivo sagrou-se um dos marcos iniciais de uma das mais produtivas e, sem dúvida, mais reverenciada leva de músicos cearenses.
Trilha
Com participação direta de apenas três dos músicos cearenses radicados à época no eixo Rio-São Paulo, o álbum de 1973 evidenciou ainda dois fatos inegáveis: que havia ali um espírito de coletividade unindo os projetos e que, acima dele, estavam os projetos individuais de cada artista.
"No ano de 1972, fomos quase todos para o Sudeste. Não dava para ficar restrito à cidade de Fortaleza e ao Estado do Ceará. Foi uma conscientização geral que tivemos, porque sabíamos o valor artístico do que estávamos realizando", afirma Ednardo.
O disco, lembra o cantor e compositor, surgiu após a participação dele, Belchior, Rodger e Téti no programa semanal "Proposta", dirigido por Júlio Lerner na TV Cultura, em São Paulo. Semanalmente, os quatro eram provocados a compor e apresentar durante as gravações canções que estivessem ligadas ao assunto abordado com o entrevistado.
"A gente começou a se reunir na casa do Belchior (em São Paulo). Foi quando surgiu o programa e o Walter Silva, que era paulista, tinha um programa de rádio, e ele nos descobriu. Na época, o Fagner já estava com uma gravadora. O Belchior, o Cirino e o Jorge Mello, também. Então gravamos nós três", conta Teti.
A ideia, reforça Rodger, era que fosse uma obra coletiva. "O Fagner tinha conseguindo uma gravação na Philips, que era a gravadora de mais prestígio na época. O Belchior também estava encaminhando, na própria Continental, um LP só dele, e não quis participar. Acabou ficando só Ednardo, Téti e eu", detalha.
O disco foi gravado em novembro de 1972 e, em março do ano seguinte, teve seu lançamento oficial. Antes, em janeiro, havia sido apresentado ao público cearense, com shows no Ideal Clube e Theatro José de Alencar.
Encarte
Da ideia à prática, o LP acabou sendo ofuscado ainda o título escolhido pelos três para o batismo da obra. "A gente começou a ser conhecido como pessoal porque a gente falava muito isso, o Pessoal do Ceará. Mas, no disco, a gente não queria que saísse assim. Tinha medo que nos confundissem com os baianos. Os caras da gravadoras disseram: ´tudo bem, fica o título que vocês querem e a gente usa esse de subtítulo´", lembra Rodger sobre as negociações.
Resultado: "Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem", verso de autoria de Augusto Pontes, saiu timidamente no canto superior esquerdo da capa. Dentro, em letras garrafais escritas em branco, sobre o fundo preto, "O Pessoal do Ceará" adornava as abas duplas do álbum, que traziam as letras das canções, os textos escritos por Ednardo, Rodger e Walter Silva, além da ficha técnica.
"Ai o título ficou. E não achei que foi ruim, não. É tanto que, no meu disco seguinte, com a Teti, ´Chão Sagrado´, a gente botou Rodger e Teti do Pessoal do Ceará, para associarem", assume Rodger.
Posteriormente, aquele disco de 1973 foi reeditado com outras capas e novos títulos. Virou "Ednardo e o Pessoal do Ceará", ao ser relançado em LP, pela Continental, em 1976; e, no aniversário de 10 anos da obra, o título saiu "Ednardo e o Pessoal do Ceará - Ingazeiras". Este permanece nas versões em CD, da Warner Music, de 1994 e 2001.
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