Cantor lança o CD ‘Pássaros urbanos’ enquanto prepara trabalho com Zé Ramalho e inicia projeto musical no Líbano
RIO - A mesa da sala no apartamento de Fagner, no Leblon,
dificilmente poderia ser usada para jantar na última terça-feira. Nela,
acumulavam-se provas de CDs, pacotes de cigarro, pastilhas para garganta,
revistas, um exemplar de “O príncipe”, de Maquiavel, numa bagunçada ordem
própria de quem tem trabalhado muito nos últimos tempos. Por últimos tempos,
entendam-se os últimos 41 anos, desde que o cantor e compositor cearense, hoje
com 64 anos, lançou o LP “Manera fru fru manera” (1973), primeiro de uma série
de 36 discos até 2009. Depois de um hiato de cinco anos, em que não parou de
fazer shows Brasil afora, Fagner lança nesta semana, pela Sony Music, o 37º
álbum de sua carreira, “Pássaros urbanos”, com 11 canções de abusado lirismo
embalado em tons contemporâneos. Enfim, tudo aquilo que o fez conquistar um
abrangente e fiel séquito de fãs.
— Venho há muito tempo construindo esse repertório, e é
através do repertório que você atinge a sensibilidade do público. Isso me
facilitou atingir camadas diferentes em torno de um mesmo sentimento — diz ele.
“VAI SER UM PRATO CHEIO PARA OS CRÍTICOS”
O sentimento de que fala Fagner percorre todo o CD, que
vem sendo preparado há dois anos, com parceiros como Fausto Nilo e Zeca Baleiro
e produção de Michael Sullivan, um hitmaker também torpedeado pela crítica pelo
que seria o apelo fácil de suas músicas. Sullivan (com Paulo Massadas) é autor
de um dos maiores sucessos do cantor, “Deslizes”, do CD “Romance no deserto”
(1987), também produzido por ele, com mais de um milhão de cópias vendidas.
— Além de pegarem no meu pé, pegam demais no do Sullivan.
Essa dobradinha vai ser um prato cheio para os críticos — brinca Fagner.
Foi Sullivan quem lhe sugeriu gravar “Paralelas”, de
Belchior. Os versos “Dentro do carro/ Sobre o trevo/ A cem por hora, ó meu
amor” entram como tributo ao antigo parceiro do megassucesso “Mucuripe”.
— Canto essa música a vida toda e sempre me esquecia de
gravar. Coincidentemente, cantei num show no Vivo Rio, e o Sullivan falou no
outro dia: “Rapaz, não vai gravar essa música não?”. É uma homenagem ao meu
parceiro, que está em paradeiro desconhecido — diz ele, referindo-se ao
autoisolamento imposto desde 2009 por Belchior, de quem nunca foi amigo
próximo, apesar de terem feito parte do mesmo movimento de artistas cearenses
que conheceram a fama no país nos anos 1970. — A música é muito bonita, uma das
mais lindas dele. Eu, como parceiro, conterrâneo, tenho a obrigação de gravar.
Não só por ele, mas por mim.
Fagner acredita estar enviando uma mensagem a Belchior:
— “Se um dia você voltar, estou aqui, continuo
esperando".
Os dois conviveram nos tempos de dureza, quando dividiam
com mais quatro pessoas uma quitinete na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana.
Fagner, que aos 6 anos já ganhava concurso de rádio em Fortaleza, decidiu
seguir a carreira de músico — a mesma do avô e do pai — apesar da contrariedade
da família. Mais novo de cinco irmãos, cursou um ano de Arquitetura na
Universidade de Brasília antes de vir para o Rio. Disputava colchão e se
alimentava (“de chocolate, banana...”) nas prateleiras das antigas Casas da
Banha, até despontar pelas mãos de Elis Regina, que gravou “Mucuripe”, e de
Nara Leão, que o ajudou a produzir o primeiro show.
Se naquela época já não se queixava — “Eu era feliz,
estava perseguindo um sonho” —, hoje a felicidade se desdobra em diversos
projetos. Enquanto dava esta entrevista, Zé Ramalho, morador do mesmo prédio,
ligava para confirmar o ensaio para o show de gravação de CD e DVD que os dois
fazem, também pela Sony, de 28 a 30 de julho, no Teatro Net Rio. É na Sony que
está grande parte do catálogo do cantor, oriundo da antiga CBS. Depois de um
período de vacas magras nas gravadoras, Fagner vislumbra agora uma oportunidade
de relançar seus antigos discos, e acha que merece isso.
Enquanto isso, o avô de Maria Clara, de 5 anos, e
Arturzinho (“homenagem ao compadre Zico”), de 2, herdeiros de Beto, seu único
filho, compõe com os parceiros e joga futebol com Zico, tênis com Guga e vôlei
com sua mais nova turma, do Posto 11, no Leblon (bairro onde desfila com
bonezinho do Baixo Vovô). Namora “pela estrada”, que é onde mais tem estado.
Quando anda pelo Ceará, bate ponto na Fundação Raimundo Fagner, que atende com
educação suplementar, artística, 400 crianças por ano, em suas sedes em
Fortaleza e em Orós, onde foi emitida sua certidão de nascimento (ele é mesmo
da capital). A paixão pela terra natal está presente, no novo CD, na regravação
de “No Ceará é assim” (1942), de Carlos Barroso. Sua inclusão tem origem
curiosa. Por causa da Copa, Fagner, fanático por futebol, tem dado muitas
entrevistas, e mesmo jornalistas estrangeiros pedem a ele para cantarolar a
música. O cantor lhe deu um formato “samba exaltação, uma espécie de clipe do
Ceará”:
— Fala-se muito pouco do Ceará no Ceará, há poucas músicas
que se referem ao estado. Ao contrário da Bahia, onde toda música fala da Bahia
— compara ele.
PROJETO COM MÚSICOS LIBANESES
Na próxima segunda-feira, Fagner estará em Fortaleza, onde
inaugura, no Hotel Sonata da Praia de Iracema, uma exposição com 32 pinturas e
fotografias, um hobby que leva muito a sério. De lá, parte para a maratona de
shows de festas juninas no Nordeste, enquanto dá a partida a um de seus
projetos mais ambiciosos: um CD e uma série de shows com músicos do Líbano, nos
moldes do “Traduzir-se” (1981), gravado na Espanha, em que reuniu artistas de
língua espanhola, como Mercedes Sosa e Camarón de la Isla. O trabalho começou a
germinar há dez anos, quando ele se apresentou, aqui no Brasil, para o
presidente do Líbano, Emile Lahoud. Fagner está começando a recolher canções de
compositores libaneses, encantado com o material que tem ouvido. Zeca Baleiro,
cuja família imigrou da Síria, já foi convidado para a empreitada, uma espécie
de resgate da história da família. O pai de Fagner, José Fares Haddad Lupus,
nasceu no Líbano, de família cristã, e testemunhou o próprio pai ser
assassinado na guerra fratricida do país, quando se preparavam para imigrar
para o Brasil. Fagner lembra-se dos pesadelos frequentes do pai, das lágrimas
ao assistir ao noticiário sobre o país na TV, e nunca quis visitar a terra de
seus antepassados. Agora, sente que é hora de encarar sua própria história.
— Sinto uma influência imensa da música libanesa no meu
jeito de cantar — diz ele. — Por isso estou voltando para essa célula com muito
cuidado, porque sei que vai ser um baque. No momento em que isso for
concretizado, em que eu pisar no palco no Líbano, periga eu desabar. Venho
guardando esse sentimento por anos. E sinto que está chegando a hora dessa cena
da história do meu pai cair no meu colo, lá no Líbano.
O olhar para trás dá serenidade ao artista, dono de uma
carreira consistente, bem-sucedida e pontuada de polêmicas — com artistas, como
Caetano, gravadoras, como a CBS, e a imprensa:
— Cheguei aqui falando um horror de coisa, com briga de
gravadora, briga no meio artístico, briga no meio político. Contrariei muita
gente, e é genial poder estar inteiraço. Eu me exponho o tempo inteiro, levo
porrada, mas pelo menos as pessoas que me interessam estão comigo.
O GLOBO
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