O samba de breque é, em definitivo, a marca registrada da obra de Moreira da Silva. Último dos malandros, como costumava enquadrar sua persona, o sambista perdeu menos de dois anos do século XX. Nasceu em 1º de abril de 1902, no Rio de Janeiro, e deixou o samba dia 6 de junho do ano 2000. Dos 98 anos, 70 foram dedicados à música. Apesar da fama, ele foi além do breque e do samba: seus discos passeiam por ritmos que vão de pontos de macumba ao rap.

Moreira da Silva: biografia recebeu o aval do sambista FOTO: LEONARDO AVERSA/ AGÊNCIA GLOBO
A trajetória do velho Kid Morengueira está registrada no livro "Moreira da Silva - O último dos malandros", do jornalista Alexandre Augusto, publicado originalmente em 1996 e que agora ganha reedição atualizada pela Sonora Editora.
A edição é lançada simultaneamente a uma caixa com três discos, reunindo a produção do sambista do início da década de 1950, pelo selo Discobertas. Trilha necessária para o bom entendimento do homem por trás do mito. "Escrevi esse livro praticamente há 20 anos. Moreira ainda estava vivo. Ainda estava nos jornais todo 1º de abril. De lá para cá, caiu praticamente no esquecimento. Isso me dá uma tristeza muito grande", lamenta o biografo, reforçando a importância da reedição para a memória do sambista.
Rap x breque
Para o biógrafo do sambista, a versatilidade musical de Moreira, apesar de sua dedicação ao breque, é resultado natural de sua personalidade e da própria trajetória, extensa, que percorreu. "Ele fez a carreira em cima do malandro, da coisa engraçada e da Cidade Maravilhosa. Mas tinha uma base musical de cantor, crooner, de intérprete de marchinhas que era totalmente diferente", pontua Alexandre Augusto.
No encarte de um dos discos relançados pela Discobertas, "O Tal e seus grandes sucessos" (1956), é possível ler o fac-símile um texto assinado pelo diretor da Revista do Disco, Santos Garcia, que já enaltecia a pluralidade musical de Moreira da Silva. Ele relembra sucessos como "Arrasta a sandália" e "Implorar só a Deus", que precederam sua adesão ao samba de breque.
"Se você se transportar para perto dos anos 2000, quando o rap emplacou, ele abraçou isso sem nenhum preconceito. Isso é raro. Era um homem de quase 100 anos de idade. O Gabriel O Pensador tinha verdadeira adoração a ele", argumenta Alexandre, sobre essa versatilidade. Moreira da Silva inaugurou sua discografia em 1931, na Odeon, com um compacto que trazia duas composições de Getúlio Marinho, "Ererê" e "Rei da Umbanda", identificadas como "pontos de macumba". Ao longo da década, ele gravaria outras no mesmo gênero, além de sambas, batucadas e marchas.
Em 1998, aos 96 anos, um de seus últimos registros em disco, foi ao lado de Gabriel O Pensador, com uma versão híbrida, entre o samba de breque e o rap, com "Amigo Urso/ Resposta do Amigo Urso", lançada no disco "Nádegas a declarar" (1999). "É possível fazer essa relação do rap com o breque, por serem músicas mais faladas. O Moreira viu identificação naquilo, ele me falou isso. Mas a matriz do rap é totalmente outra. Para você ver como o mundo e a raça é uma só", pondera o autor.
Antes da participação no disco de Gabriel O Pensador, Moreira da Silva também havia gravado rap com a banda paulista Professor Antena - ele aparece num registro de 1994, "Dinamite". O sambista foi considerado uma espécie de precursor do rap no Brasil, pela aproximação entre o breque e o rap e sua afinidade pública com o novo gênero. No livro, Alexandre reforça que Moreira dizia não gostar de rap, mas aos jornais, não perdia a chance de elogiar os músicos e o gênero.
O autor narra ainda um episódio em que Moreira da Silva se indispôs com Nelson Gonçalves, que desprezava o rap. "Numa entrevista para o jornal carioca O Dia, o repórter perguntou a Nelson o que ele achava do rap. A resposta foi áspera. O repórter ressaltou que seu contemporâneo, Moreira da Silva, gostava do gênero e, inclusive, tinha gravado com uma banda de rap. O cantor disse então que Moreira da Silva não era parâmetro para ninguém. Não passava de uma farsa, pois nunca foi malandro e não tinha voz", narra. Moreira nunca chegou a responder a provocação.
Reedição
A nova edição do livro foi revisada e ampliada por Alexandre Augusto, que escreveu um capítulo a mais, o posfácio batizado de "E as mulheres", em que retoma um pouco da trama de escrita e completa as páginas com as últimas cenas da história. Moreira da Silva morreu quatro anos depois da publicação, aos 98 anos de idade, ainda lúcido e na ativa. "Moreira nunca parou de cantar. Em abril de 2000, já com 98 anos de idade, fez o show ´Quase 100´, na Casa Cultural Estácio de Sá. Aos mais próximos, dizia não acreditar que chegaria a um século de vida. ´Oh, morte cabeluda, não me iluda´, cantava", escreveu.
A edição traz ainda uma seleção de fotos do sambista, da infância até seu 98º aniversário, em 1º de abril do ano 2000. Também a discografia detalhada do artista, de 1931, quando lançou seu primeiro compacto, ao clássico "Os 3 Malandros In Concert", que encerrou sua produção fonográfica, registrado ao lado de Bezerra da Silva e Dicró, numa sátira ao formato dos Três Tenores. Um divertido "Glossário da Malandragem" completa o material com termos utilizados por Moreira da Silva em seus breques.
FÁBIO MARQUES
REPÓRTER
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