Edição
lançada hoje traz as cartas entre o poeta português e Ofélia Queiroz, sua única
namorada conhecida
“Todas
as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas.” Fernando Pessoa (1888-1935), autor desses versos, sob o heterônimo
Álvaro de Campos, quem diria, também escreveu cartas de amor — ridículas. No
bom sentido, claro. Pessoa chamava a namorada de “nininha” e até escrevia
imitando voz de bebê. Agora, essa delicada troca de palavras entre o poeta e
sua única namorada conhecida, Ofélia Queiroz (1900-1996), surge reunida em uma
edição especial. “Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz — Correspondência amorosa
completa (1919-1935)” (Editora Capivara) chega às livrarias brasileiras ao
mesmo tempo em que é lançado na Casa Fernando Pessoa, em Portugal. Justamente
hoje, no dia dos namorados.
Após a morte de Pessoa, Ofélia
guardou a correspondência dele por mais de 40 anos em uma caixa de bombons. Em
1978, ela veio a público e revelou ter namorado o poeta. Naquele ano, o
pesquisador português Davi Mourão Ferreira publicou as 51 cartas escritas por
ele, mas ninguém imaginava que o poeta também havia preservado as cartas
enviadas por ela. Em 1996, a família de Pessoa publicou 110 delas, de um total
de 270. Ano passado, a pesquisadora Manuela Parreira da Silva cruzou as
missivas das duas edições.
Até aqui, 160 cartas estavam
inéditas. O novo livro é uma iniciativa do colecionador Pedro Corrêa do Lago e
de sua mulher, a pesquisadora Beatriz Corrêa do Lago. Em 2002, os dois
compraram as cartas de Pessoa em um leilão. Anos depois, procuraram a família do
poeta e adquiriram as cartas escritas por Ofélia. Para organizá-las e escrever
as notas, chamaram Richard Zenith, uma das maiores autoridades na obra de
Pessoa.
— Agora, podemos ter mais
detalhes sobre os hábitos do poeta e do namoro. Há um valor biográfico — diz
Zenith, que escreve um novo livro sobre o poeta, ainda sem data de publicação.
Sozinhos no escritório
A correspondência entre Pessoa
e Ofélia começou como um flerte de bilhetes discretos, trocados no meio do
escritório de um primo do poeta. Ele traduzia textos do inglês e francês; ela
era datilógrafa. Quando Ofélia foi fazer entrevista para o emprego, já o achara
engraçado: ele vestia um “chapéu de aba” e trazia as calças para dentro das
meias. Durante a entrevista dela, Fernando Pessoa dava um sorrisinho. Ou pelo
menos era assim que Ofélia se lembrava do encontro.
Ainda segundo o relato que ela
faria mais tarde, um dia faltou luz no escritório, justo quando os dois estavam
sozinhos. O poeta deixou um bilhete na mesa dela: “Peço-lhe que fiques.” Ofélia
se preparava para sair, quando Pessoa se aproximou e começou a declamar os
versos de Shakespeare em que Hamlet se declara para Ofélia: “Meço mal os meus
versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo.” E
puxou-a pela cintura, dando-lhe um beijo. A troca de cartas propriamente ditas
começou ali.
Sempre especulou-se sobre a
suposta homossexualidade de Pessoa. Mas é possível ver que ele realmente esteve
envolvido com Ofélia, embora não haja, nas cartas, qualquer sugestão de que o
casal tenha feito sexo algum dia. Ele gostava dos “jinhos” (beijinhos) enviados
por ela nas cartas. Chegou até a desenhar um mapa com o caminho mais longo para
deixá-la em casa, para ficar mais tempo com ela.
Na correspondência também há
tristeza, porque Ofélia amou muito mais. Ela escreveu 270 cartas; ele, só 51.
Em várias, a moça reclama dos sumiços de Pessoa, da ausência de cartas e
telefonemas. E dá sermão quando ele abusa da bebida. A datilógrafa quer se
casar, mas o poeta quer se dedicar à sua arte. Ela chega a assinar uma missiva
como “Ofélia Pessoa (quem me dera)”.
— É uma história um tanto
melancólica de um homem que não tinha a capacidade de amar no sentido habitual.
Do outro lado, uma jovem ingênua, que não vê outro destino para si diferente do
casamento tradicional. A literatura e o amor nem sempre jogam o mesmo jogo —
afirma Eduardo Lourenço, filósofo e crítico literário português, que assina o
prefácio do livro.
Em 20 de novembro de 1920,
Pessoa termina com Ofélia. Numa carta melancólica, em que diz não mais amá-la:
“Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se
amaram um pouco quando meninos, e (...) conservam sempre, num escaninho da
alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.” Em seguida, o que parece
uma referência à literatura: “O meu destino pertence a outra Lei, de cuja
existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a
Mestres que não permitem nem perdoam.”
Os dois se reencontram nove
anos depois, em 1929. Fernando Pessoa já é um quarentão, e Ofélia também está
mais madura. Desse período em diante, as cartas dele trazem uma prosa mais
parecida com o estilo que o consagrou.
Mas o poeta era um fingidor. Na
mesma época, insere uma nova “pessoa” no relacionamento: seu heterônimo Álvaro
de Campos, que é contra o namoro. Os sumiços dele continuam, só que dessa vez a
culpa é de Álvaro de Campos, que lhe “toma” os papéis e canetas .
Numa das cartas, o heterônimo
escreve: “Excelentíssima Senhora Dona Ofélia de Queiroz, um abjeto e miserável
indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo,
encarregou-me de comunicar a V.Ex.ª — considerando que o estado mental dele o
impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da
obediência e da disciplina) — que V. Ex.ª está proibida de: (1) pesar menos
gramas, (2) comer pouco, (3) não dormir nada, (4) ter febre, (5) pensar no
indivíduo em questão.”
O curioso: mais de uma vez,
Ofélia relata ter encontrado Álvaro de Campos ou recebido um telefonema dele.
No começo, ela odeia o heterônimo; depois, tenta cooptá-lo para se aproximar de
Pessoa. Envia papel e canetas por ele para o poeta.
‘Preso e incomunicável’
Em 1931, como tentativa de se
afastar de Ofélia, Pessoa bota em ação outro heterônimo: Ricardo Reis. Reis não
escreve cartas, mas Ofélia diz ter recebido ligações dele. Em 1931, ela afirma:
“Escrevo-lhe para dizer que me telefonou hoje um cavalheiro anunciando-se
Ricardo Reis, e que vinha da sua parte para me participar que o Nininho estava
preso e incomunicável e que só apareceria no princípio de março.” Entre 1932 e
1935, eles só se cumprimentam nos aniversários.
No “Livro do desassossego”,
escrito pelo semi-heterônimo Bernardo Soares, o personagem poético que mais se
assemelha ao Pessoa real, Soares diz só ter sido amado uma vez. Pode ser uma
referência a Ofélia. Já o poema “Todas as cartas de amor são ridículas”, de
Álvaro de Campos, foi escrito em 1935, um mês antes da morte do poeta. Nele,
afirma: “Só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor/ É que são/
Ridículas.”
O GLOBO
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