O escritor baiano Dias Gomes. Créditos: Rede Globo/Divulgação |
A madrugada de 18 de maio de
1999 foi cruel com a dramaturgia nacional. Um acidente brutal interrompeu a
escrita de um homem que estava na linha de frente de uma geração que
abrasileirou peças, novelas e filmes. Tinha 76 anos quando teve a vida
engolfada por uma estúpida imprudência de trânsito. Mas o traço universal
reverbera. Neste semestre, a TV Globo remonta um dos maiores sucessos dele:
Saramandaia, novela assentada no realismo fantástico sul-americano, que alegrou
um triste Brasil de 1976. Em plena ditadura militar, o espectador arregalou os
olhos para testemunhar João Gibão voar, livre como um pássaro fora da gaiola,
sobre uma cidade dominada por coronéis, que lançavam formigas pelas narinas.
“Consigo pilotar meu barco ao sabor dos ventos, mas sei que há muito mar pela frente. Talvez nunca chegue ao porto. Tomara mesmo que não, pois o melhor da viagem é estar nela”, escreveu Dias Gomes na autobiografia Apenas um subversivo, publicada um ano antes da morte. Dias Gomes era um menino quando chegou ao Rio de Janeiro num esquisito tempo de entre guerras. Cresceu num o país vigiado pela ditadura getulista. Ali, em 1942, a cabeça fervilhava de ideias. Queria fazer teatro. Não sabia que a dramaturgia seria munição contra o regime. Tornaria-se um um dos autores mais censurados do país.
Em 1942, entregou textos para dois mitos da cena nacional: os rivais Jayme Costa e Procópio Ferreira. Os dois ainda trabalhavam como se fossem vedetes tradicionais. Não participavam de ensaios diários. Jayme ficou reticente com o texto de Dias, Amanhã será outro dia. Desafiou o rapaz. Pediu para que escrevesse sátira à peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo, o primeiro sucesso teatral brasileiro na metade de século. Dias correu e concebeu Pé de cabra. O ator leu e temeu problemas com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A peça acabou nas mãos do desafeto Procópio Ferreira. E, lógico, foi censurada. Dez páginas foram cortadas, e o autor taxado de marxista sem ler Karl Marx. A plateia soltou um “oh” quando viu que o autor tinha só 19 anos.
O crítico Viriato Corrêa elogiou a montagem com um trocadilo premonitório: “Mais dias menos dias, Dias Gomes será o escritor mais festejado da cena brasileira”. Em 1960, o público aplaudiu O pagador de promessa, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até então marcado por adaptações de textos internacionais. Choveram elogios e prêmios no Brasil e no exterior. A peça ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. O povo virava protagonistas dos palcos e essa, talvez, seja a maior contribuição do autor, num tempo em que era preciso encontrar uma identidade nacional diante da ameaça armada dos militares. “O teatro foi eleito perigoso inimigo do regime. Talvez, porque fossem das casas de espetáculos, das assembleias que aí se realizavam, dos manifestos que delas resultavam que partiam os primeiros protestos contra a ditadura”, escreveu Dias Gomes.
“Consigo pilotar meu barco ao sabor dos ventos, mas sei que há muito mar pela frente. Talvez nunca chegue ao porto. Tomara mesmo que não, pois o melhor da viagem é estar nela”, escreveu Dias Gomes na autobiografia Apenas um subversivo, publicada um ano antes da morte. Dias Gomes era um menino quando chegou ao Rio de Janeiro num esquisito tempo de entre guerras. Cresceu num o país vigiado pela ditadura getulista. Ali, em 1942, a cabeça fervilhava de ideias. Queria fazer teatro. Não sabia que a dramaturgia seria munição contra o regime. Tornaria-se um um dos autores mais censurados do país.
Em 1942, entregou textos para dois mitos da cena nacional: os rivais Jayme Costa e Procópio Ferreira. Os dois ainda trabalhavam como se fossem vedetes tradicionais. Não participavam de ensaios diários. Jayme ficou reticente com o texto de Dias, Amanhã será outro dia. Desafiou o rapaz. Pediu para que escrevesse sátira à peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo, o primeiro sucesso teatral brasileiro na metade de século. Dias correu e concebeu Pé de cabra. O ator leu e temeu problemas com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A peça acabou nas mãos do desafeto Procópio Ferreira. E, lógico, foi censurada. Dez páginas foram cortadas, e o autor taxado de marxista sem ler Karl Marx. A plateia soltou um “oh” quando viu que o autor tinha só 19 anos.
O crítico Viriato Corrêa elogiou a montagem com um trocadilo premonitório: “Mais dias menos dias, Dias Gomes será o escritor mais festejado da cena brasileira”. Em 1960, o público aplaudiu O pagador de promessa, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até então marcado por adaptações de textos internacionais. Choveram elogios e prêmios no Brasil e no exterior. A peça ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. O povo virava protagonistas dos palcos e essa, talvez, seja a maior contribuição do autor, num tempo em que era preciso encontrar uma identidade nacional diante da ameaça armada dos militares. “O teatro foi eleito perigoso inimigo do regime. Talvez, porque fossem das casas de espetáculos, das assembleias que aí se realizavam, dos manifestos que delas resultavam que partiam os primeiros protestos contra a ditadura”, escreveu Dias Gomes.
Personagens criados pelo novelista Dias Gomes - Viúva Porcina e Sinhozinho Malta. |
As
criações
Personagens
escritos pelo novelista ficaram no imaginário popular
Bicheiro Tucão | O bicheiro de Bandeira 2 foi criação ousada para as telenovelas brasileiras. A Globo queria Sergio Cardoso no papel, cujo contrato permitia reescrever o texto. Sergio recusou. Dias ameaçou sair da Globo. O tema chegou à cúpula da emissora. Dias sugeriu Paulo Gracindo, até então sem o respeito devido na profissão. Foi um estouro.
Odorico Paraguaçu | Procópio Ferreira viveu sem sucesso Odorico no teatro. A adaptação para a TV foi desafio. Coube a Paulo Gracindo, preferido de Dias, dar a vazão ao tipo que virou a cara do mau político. Está vivo no imaginário do brasileiro e até nas redes sociais.
Viúva Porcina | Regina Duarte era uma atriz querida por ele. Na década de 1960, tentou emplacá-la como Branca Dias, de O santo inquérito, mas o diretor Ziembinski vetou. A personagem deu guinada na carreira da intérprete.
João Gibão | O protagonista de Saramandaia tinha asas que precisavam ser aparadas para não voar. Era metáfora potente em tempos de ditadura, torturas, mortes e exílios. Dias Gomes sofreu patrulhamento intelectual, que o acusou de copiar o estilo do realismo fantástico muito em moda na América do Sul.
Zé do Burro | Inspirado numa promessa que a mãe de Dias fez para o filho Guilherme passar em medicina. Ela jurou assistir à missa em cada igreja de Salvador. Fernanda Montenegro (cotada antes para o papel) teria ficado chateada. E, tempos depois, dito: “Você nos traiu.” Zé do Burro foi imortalizado no cinema (foto), e no teatro.
Bicheiro Tucão | O bicheiro de Bandeira 2 foi criação ousada para as telenovelas brasileiras. A Globo queria Sergio Cardoso no papel, cujo contrato permitia reescrever o texto. Sergio recusou. Dias ameaçou sair da Globo. O tema chegou à cúpula da emissora. Dias sugeriu Paulo Gracindo, até então sem o respeito devido na profissão. Foi um estouro.
Odorico Paraguaçu | Procópio Ferreira viveu sem sucesso Odorico no teatro. A adaptação para a TV foi desafio. Coube a Paulo Gracindo, preferido de Dias, dar a vazão ao tipo que virou a cara do mau político. Está vivo no imaginário do brasileiro e até nas redes sociais.
Viúva Porcina | Regina Duarte era uma atriz querida por ele. Na década de 1960, tentou emplacá-la como Branca Dias, de O santo inquérito, mas o diretor Ziembinski vetou. A personagem deu guinada na carreira da intérprete.
João Gibão | O protagonista de Saramandaia tinha asas que precisavam ser aparadas para não voar. Era metáfora potente em tempos de ditadura, torturas, mortes e exílios. Dias Gomes sofreu patrulhamento intelectual, que o acusou de copiar o estilo do realismo fantástico muito em moda na América do Sul.
Zé do Burro | Inspirado numa promessa que a mãe de Dias fez para o filho Guilherme passar em medicina. Ela jurou assistir à missa em cada igreja de Salvador. Fernanda Montenegro (cotada antes para o papel) teria ficado chateada. E, tempos depois, dito: “Você nos traiu.” Zé do Burro foi imortalizado no cinema (foto), e no teatro.
Tuca Andrade como João Gibão, outro personagem memorável |
Atalho
face ao regime militar
Dias Gomes sonhava em viver de teatro. Mas a ditadura militar o acossou. A censura perseguia cada linha do texto. Por conta das ligações com o Partido Comunista, respondia a inúmeros inquéritos. A situação financeira era delicada. Quem sustentava a casa era a mulher, Janete Clair, que escrevia novelas na TV Globo com relativo sucesso. Não havia saída. O caminho era mesmo escrever novelas e enfrentar o patrulhamento ideológico e feroz da esquerda. Afinal, a televisão era tida como um meio alienante e aliado ao sistema.
“Arrebanhei minhas personagens, meu pequeno universo, e, como quem muda de casa, mas conserva a mobília, lancei-me a aventura”, contava Dias. Com a utopia de um teatro popular como lastro, Dias Gomes foi alterando as regras do jogo na TV. A revolução da teledramaturgia que ocorrerá nos anos 1970 está diretamente ligada ao seu repertório. O bicheiro Tucão, de Bandeira 2, o prefeito Odorico Paraguaçu, de O bem-amado, o homem de asas João Gibão, de Saramandaia. Saíram todos do imaginário popular, que já havia feito uma transformação no palco nacional.
As novelas de Dias Gomes não faziam o jogo político do conformismo. Volta e meia, ele era intimado a depor. A proibição da primeira versão de Roque Santeiro, programada para 1975, tem a ver com esse passado. Sem saber que o telefone estava grampeado, Dias Gomes revelou, ironicamente, que a novela era a adaptação de O berço do herói, peça odiada pelos militares e que, em formato novelístico, passaria despercebida, já que os censores eram seres afamados pela inteligência restrita. Resultado: a novela foi proibida no dia da estreia, com a TV Globo enfrentando a ditadura ao convocar o apresentador Cid Moreira para ler editorial ao vivo ao fim do Jornal Nacional. Roque voltaria em 1986 para se tornar um dos fenômenos da TV.
Dias Gomes sonhava em viver de teatro. Mas a ditadura militar o acossou. A censura perseguia cada linha do texto. Por conta das ligações com o Partido Comunista, respondia a inúmeros inquéritos. A situação financeira era delicada. Quem sustentava a casa era a mulher, Janete Clair, que escrevia novelas na TV Globo com relativo sucesso. Não havia saída. O caminho era mesmo escrever novelas e enfrentar o patrulhamento ideológico e feroz da esquerda. Afinal, a televisão era tida como um meio alienante e aliado ao sistema.
“Arrebanhei minhas personagens, meu pequeno universo, e, como quem muda de casa, mas conserva a mobília, lancei-me a aventura”, contava Dias. Com a utopia de um teatro popular como lastro, Dias Gomes foi alterando as regras do jogo na TV. A revolução da teledramaturgia que ocorrerá nos anos 1970 está diretamente ligada ao seu repertório. O bicheiro Tucão, de Bandeira 2, o prefeito Odorico Paraguaçu, de O bem-amado, o homem de asas João Gibão, de Saramandaia. Saíram todos do imaginário popular, que já havia feito uma transformação no palco nacional.
As novelas de Dias Gomes não faziam o jogo político do conformismo. Volta e meia, ele era intimado a depor. A proibição da primeira versão de Roque Santeiro, programada para 1975, tem a ver com esse passado. Sem saber que o telefone estava grampeado, Dias Gomes revelou, ironicamente, que a novela era a adaptação de O berço do herói, peça odiada pelos militares e que, em formato novelístico, passaria despercebida, já que os censores eram seres afamados pela inteligência restrita. Resultado: a novela foi proibida no dia da estreia, com a TV Globo enfrentando a ditadura ao convocar o apresentador Cid Moreira para ler editorial ao vivo ao fim do Jornal Nacional. Roque voltaria em 1986 para se tornar um dos fenômenos da TV.
Diário de Pernambuco
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