Na capital pernambucana, músicos
como JuveNil Silva misturam influências e produzem a si mesmos
RIO - Recife volta a vibrar. Mas numa outra
frequência, que não tem nada a ver com os tambores do maracatu, o toque
frenético de caixa do frevo ou o bum-bum-bum da zabumba do forró. A palavra de
ordem do mais novo movimento musical na cidade é velha: desbunde. A psicodelia
do Pink Floyd inicial, com o folk guerrilheiro de Bob Dylan e as pirações
nordestinas dos anos 1970, de Lula Côrtes, Zé Ramalho, Raul Seixas e Ave
Sangria dão o ponto de partida para uma série de artistas solo que despontam,
via internet, dos subterrâneos da cidade. Nomes como os de JuveNil Silva, Jean Nicholas,
German Ra, D’Mingus e Matheus Mota, que se aproveitam dos notebooks e placas de
som para gravar a sua produção caudalosa, experimental, e escoá-la em
Soundclouds.
O grande aglutinador da cena é JuveNil Silva, que
no primeiro dia do ano liberou para download o seu primeiro álbum, “Desapego”.
Ex-guitarrista da banda de rock Canivetes, hoje na Dunas do Barato, de MPB, ele
sintoniza Raul, Arnaldo Baptista e Beatles em canções como “Hitchcock rock”,
“Pomba-gira violeta” e “Meu freeweeling do Bob Dylan” — essa, feita para a tia
que, numa rusga, quebrou seu LP mais caro.
— Eu sempre fui compositor, fazia as músicas para
as bandas, e o pessoal cantava — relata JuveNil. — Um dia, me falaram que eu
interpretava as minhas músicas de um jeito que tinha mais feeling, que
era mais real. Eu era do contra, não queria gravá-las. Mas aí percebi que
estava ficando chato com esse papo. Vi que ia fazer 27 anos e que poderia
morrer a qualquer momento... Aí entrei na vibe de deixar a minha marca,
mesmo que seja para poucos.
Daí saiu “Desapego”. Um disco feito sem ensaios,
com alguns músicos amigos (entre eles, Jean Nicholas, D’Mingus e Matheus Mota),
aproveitando a promoção de um estúdio.
— Não parei para pensar em nenhum arranjo. Gosto de
me botar numas roubadas — conta o cantor, para quem “banda é um negócio muito
complexo, todo mundo quer dar opinião”.
O nome JuveNil veio dos tempos em que era
adolescente e gostava de fuçar discos dos anos 1970 em sebos e andar só com
pessoas mais velhas. Entre elas, o cantor Lula Côrtes, falecido em 2011, que em
1975 gravou com Zé Ramalho em Pernambuco um clássico do folk-psicodélico
nacional, o LP “Paêbirú. É na onda desse disco, acústico e místico, que ele
pensa em fazer o seu próximo, com voz e violão de duas cordas.
Ressaca do mangue bit
Colega de JuveNil no subúrbio de Areias, Jean
Nicholas, de 31, chegou a ter com ele uma banda de rock. Solo, foi fazer folk
estilo anos 1970, em canções como “Tal visão”. Há cinco anos, porém, ele tem o
Jean Nicholas e a Bueiragem, que se prepara para lançar o seu primeiro álbum.
— A nossa proposta musical era a diversidade. Por
causa do mangue bit, chegou uma época aqui em Recife em que toda banda tinha
que ter alfaia (um dos tambores do maracatu). Acabou rolando uma
ressaca. Depois, veio aquele monte de bandas querendo soar como os Strokes —
conta Jean. — Mas esse pessoal indie era mais classe média alta. E nós,
da periferia, do rock.
Com JuveNil, Jean começou a promover, sete anos
atrás, um festival para divulgar essa cena maldita do Recife: a Noite do
Desbunde Elétrico (o próximo é no dia 18 de maio). Hoje, Jean continua
psicodélico e folk, só que incorpora ao seu trabalho eletrônicas, rap e
afrobeat (“Tenho uma visão mais crítica do passado”, alega).
Integrante de uma das bandas que participaram desse
festival, a Sabiá Sensível, o cantor e guitarrista Germano Rabelo, 33, também
partiu para o seu projeto solo. O German Ra, com o qual planeja lançar ainda
este ano o seu primeiro álbum, “Rostinho bonito”.
— Tenho uma ligação muito forte com a composição, por
isso acabo não fazendo muitos shows — diz ele, que jogou no seu Soundcloud
(https://soundcloud.com/germanra) um punhado de canções como “Te amo
Itamaracá”, “Frevo do Perdido” e “Restart Zigurate”, que, sim, fala do grupo de
rock adolescente de grande sucesso.
— Eu estava num encontro da Nova Consciência em
Campina Grande e comecei a pensar em como a civilização atual é efêmera,
descartável. Aí, pensei em juntar o Restart, a Babilônia e os Fenícios —
explica Germano, que grava seus rocks rurais e lisérgicos em casa, na base do
faça-você-mesmo. — Gravei até instrumentos que não sabia tocar direito, como a
bateria.
Se JuveNil Silva é o agregador do Desbunde
Recifense, Domingos Porto, o D’Mingus, de 33, é o gênio de estúdio.
Guitarrista, flautista e produtor, ex-integrante da banda de post-rock
Monodecks, ele fez o disco mais ambicioso da cena, “Canções do quarto de trás”,
um pequeno e muito bem polido diamante de folk barroco, que pode remeter tanto
ao grupo inglês Renaissance quanto ao Quinteto Violado.
— Criei um estúdio caseiro e vi que o pessoal
estava cheio de ideias. Aí, chamei-os para gravar — conta Domingos, que montou
o selo Pé de Cachimbo Records, pelo qual lançou seu disco e outros, como a
trilha sonora do filme “O ano passado em Itamaracá” (da qual participou, junto
com German Ra). — Esteticamente, existe um certo embate ideológico entre os
artistas da cena. Mas, paradoxalmente, todo mundo toca com todo mundo.
Carioca criado em Recife, o tecladista Matheus
Mota, de 25, é ativo na turma (tocou baixo com o Sabiá Sensível, participou das
gravações do “Desapego”), mas é aquele cujo trabalho tem menos semelhanças com
os dos amigos. Lançado no ano passado, o seu álbum de estreia, “Desenho”, é
quase jazzístico, com canções de temática mais urbana, como “Escola” e
“Avenida”. Matheus conheceu JuveNil em 2008 e logo depois se animou a gravar
suas músicas em casa mesmo, no laptop.
— Todo mundo aqui é amigo, o pessoal meio que se
ajuda — reconhece Matheus, que prepara um novo disco mais ou menos nos mesmos
moldes de “Desenho”, para lançar ainda em 2013. — Só não sei se o povão que
pula no Carnaval ouvindo Chico Science vai curtir muito as minhas músicas...
— O que liga realmente a galera é a vontade de
experimentar, de fazer som autoral — analisa Germano Rabelo. — Esse lado folk,
mais Bob Dylan, que boa parte de nós tem, veio pelo simples fato de que muitas
das vezes só tínhamos um violão para nos expressar.
Silvio Essinger
O Globo
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