Lá se vão 100 anos desde que Vitalino, aos seis anos de idade, começou a pegar pedaços de barro da mãe louceira para fazer "loiça de brincadeira". Daquelas sobras, o menino moldava, com imaginação, bois e cavalos que lhe fariam companhia pelo sertão pernambucano. Criado "trancado vivo", como disse certa vez em depoimento à Fundação Joaquim Nabuco, Vitalino cresceu homem cismado e observador atento.
Começou a moldar no barro o que via ao redor - cenas cotidianas do sertão, figuras ilustres, lendas e costumes fortes que continuam vivas no Nordeste. "Eu via fazer uma procissão no mato - fazer a novena, botar os santo no ombro, sair o povo com o zabumba. Eu estudei aquilo e botava no barro", explicou na entrevista que concedeu a René Ribeiro para a Fundação Joaquim Nabuco.
Vitalino começou a arte em barro feito brincadeira, mas criou tanto gostou que decidiu fazer daquilo profissão. O trabalho focado na figura humana e a capacidade de revelar, no barro, as subjetividades nordestinas lhe deram projeção nacional.
Reconhecimento mesmo ele foi receber em 1947, quando o educador Augusto Rodrigues organizou, no Rio de Janeiro, a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana. Dali em diante, foram várias as exposições nacionais e internacionais. As obras de Vitalino - que começaram a ser vendidas na feira de Caruaru - foram ganhando espaço em museus e galerias da Suíça, da França e mesmo do Brasil. O acervo do Museu de Arte Contemporânea do Ceará (Mauc) possui, hoje, várias as obras do artista.
Ao longo dos anos, Vitalino foi desenvolvendo suas técnicas. No início, trabalhava as cores em suas obras por meio dos mais diversos tons de argilas - das mais avermelhadas às brancas. Depois, o artista começou a experimentar as tintas. O contato com grandes museus e colecionadores, porém, geram novas influências e, a partir dos anos 1950, Vitalino deixa suas obras com um caráter rústico, preservando a cor original da argila queimada.
Mas o legado do Mestre Vitalino extrapola as técnicas que deixou para os filhos. Quando começou a ganhar visibilidade com a arte primitiva em barro, influenciou conterrâneos a seguir o mesmo caminho. Do contato com ele, surgiram outros mestres como Zé Caboclo e Manoel Eudócio, cujos filhos (juntamente aos descendentes de Vitalino) mantêm a tradição que colocou a localidade do Alto do Moura, a sete quilômetros do centro de Caruaru, como um dos principais centros de produção de arte figurativa em barro no Nordeste.
"Estamos dando continuidade à arte (de Mestre Vitalino) através de seis filhos que ele deixou. O trabalho de arte que tem no Alto do Moura hoje vem do meu pai. Este ano completa 100 anos desde que ele começou, em 1915, nessa arte de mostrar o nosso cotidiano", orgulha-se Severino, quarto filho de Mestre Vitalino. Assim como o pai, Severino começou a mexer com barro cedo. Tinha sete anos quando se juntou aos irmãos ao lado do pai para observar o trabalho que ele fazia.
Enquanto produzia as peças, Vitalino ia distribuindo as sobras de barro aos filhos, que tentavam imitar seu trabalho. "O que eu faço hoje tem o mesmo estilo do meu pai, pra dar continuidade. Ele criou 118 personagens", diz Severino, hoje com 74 anos. A técnica e a forma de trabalhar de Severino segue a mesma do pai: todos os dias, ele vai para a Casa Museu Vitalino tatear o barro e moldar a cultura nordestina com o auxílio das mesmas ferramentas utilizadas pelo pai - faca, palito e pena de peru para os detalhes.
"Não teve muita mudança em relação aos temas retratados pelo meu pai e por mim. Mas o acabamento, a perfeição hoje vem mudando. A gente tem uma peça mais fina, a dele era mais rústica porque ele aprendeu por conta própria, tinha um dom. Nós mudamos esse acabamento. A diferença que tem do meu trabalho pro dele é que meu pai não assinava, ele carimbava porque era analfabeto. Hoje eu não uso o carimbo, eu assino: Severino Vitalino", ele diz, com orgulho.
No Alto do Moura, a arte de esculpir em barro vem sendo transmitida de pai para filho. O ofício convencionou-se tradição para manter-se vivo. Lá, uma geração de filhos de artistas contemporâneos de Vitalino seguem o trabalho enquanto ensinam os próprios filhos a imprimir sua cultura em barro. "A gente está levando adiante e colocando a nossa particularidade, porque cada um tem seu jeito, mas sem deixar de lado o que aprendemos com os nossos pais", brada Horácio Rodrigues, o caçula dos oito filhos do Mestre Zé Caboclo que segue o mesmo trabalho do pai.
Horácio não aprendeu a arte em barro com o pai. "Quando ele faleceu, eu tinha sete anos e ainda não tinha começado na arte. Mas aos oito anos eu já estava observando o trabalho da minha mãe e dos meus irmãos, então comecei a fazer", conta. Já o irmão dele, Antônio Rodrigues, iniciou a carreira pintando as peças do pai. "Comecei fazendo as mais simples, sobre o cotidiano na roça, onde eu trabalhava. Habilidade é uma coisa que a gente vai adquirindo aos poucos", ele diz.
Zé Caboblo não foi homem de incentivar os filhos a seguir o caminho da arte de pouco retorno financeiro. "Ele dizia pra gente estudar e aprender outra profissão porque mais pra frente a gente não ia ter como viver da arte. Logo ele foi uma pessoa muito sacrificada, teve que criar oito filhos e se sentia desmotivado. Mas a gente optou por seguir o mesmo caminho. Estamos procurando aperfeiçoar, criar coisas novas", diz Antônio.
Foi nessa busca que Marliete Rodrigues, também filha de Zé Caboclo, se inspirou para produzir suas peças - a maioria em miniaturas de quatro a seis centímetros. "Crio muito em cima das cenas do nosso dia a dia, gosto muito de fazer coisas sobre as brincadeiras da infância e as histórias da família. Acho que a gente precisa cuidar da nossa arte", afirma. E logo em seguida sorri em comemoração: "Já fizemos trabalhos fora do Brasil representando a nossa arte, e nos sentimos muito bem valorizados e acolhidos".
Para o irmão dela, Horácio, a conjuntura em torno do trabalho deles hoje é fruto de uma luta dos contemporâneos de seu pai, principalmente de Mestre Vitalino. "Hoje a nossa arte está sendo muito divulgada, tem muitos colecionadores que têm interesse. Alguns trabalham mais em linha de produção, com peças modernas. Nós levamos em uma linha mais tradicional, colocando a particularidade do artesão", explica.
Ademilson Rodrigues, filho do artista Manoel Eudócio (que ainda atua na arte), diz que a história dele segue se repetindo no Alto do Moura. "Os nossos filhos começam a pegar a massa pra brincar, e aquilo acaba virando uma coisa real, de onde se tira o sustento", conta. A preocupação em dar visibilidade ao dia a dia do nordestino ainda é mote para grande parte das peças. Quando a terceira geração começa a chegar na adolescência, tende a procurar outras profissões diante do retorno demorado dos artistas populares.
"Daqui pra frente, haverá uma grande barreira pra se viver da arte figurativa. A nossa geração ainda dá, mas para as gerações mais novas vai ser ainda mais difícil", lamenta. A dificuldade para vender as peças sem desvalorizá-las e garantir o sustento das famílias são desafio, mas a preocupação deles está ainda em preservar o trabalho iniciado pelos pais e avós. "Eles deixaram um legado que não pode se perder nunca. Encontramos, sim, dificuldade. Hoje não é fácil viver da arte, mas mantendo as origens e essas características, ainda dá pra sobreviver", arremata Ademilson.
Diário do Nordeste
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